Para melhor entender a nossa sociedade é preciso as vezes olhar não somente para ela mas para suas projeções nas diversas esferas do cotidiano. A maternidade no esporte, por exemplo, nos dá muitas lições sobre relações de trabalho e de gênero e sobre como é verdadeiramente encarado algo tão natural, seja no âmbito esportivo, seja no social.
Os acontecimentos que envolvem uma gravidez no esporte geralmente compõem um cenário que aponta para um ambiente indefectivelmente machista e, ao mesmo tempo, repleto de mulheres que lutam para viver tanto seus sonhos quanto suas vontades, suas decisões.
Não que ser mãe no tênis, no futebol ou no vôlei seja um passeio. A própria prática esportiva de alto rendimento é conceitualmente oposta às transformações corporais decorrentes da gestação.
Acontece que deveres e direitos andam de mãos dadas, ou pelo menos deveriam. É até óbvio dizer, mas qualquer mulher, assim, pode batalhar para ser mãe e atleta — ou exercer qualquer outra profissão, já que caímos nesse assunto.
O problema é que, dentro dessa luta, os obstáculos sociais tendem a ser maiores do que os naturais, algo simplesmente inaceitável.
Estigmatização da maternidade, controle sobre o corpo e vigilância quanto ao comportamento feminino estão entre essas barreiras, junto das dificuldades contratuais junto aos clubes e patrocinadores, que acontecem até antes mesmo de se iniciar uma gestação de fato.
Ainda assim, como falamos, o meio esportivo está repleto de mulheres que colocam nos objetivos de vida a mesma obstinação que têm para a competição.
Não faltam, portanto, exemplos e histórias de maternidade no esporte. No texto a seguir, vamos compartilhar alguns deles, tentando sempre contribuir para um debate importantíssimo, e, quem sabe, para uma melhor compreensão da nossa sociedade.
A gravidez no esporte brasileiro
No Brasil, se ser mãe no mercado de trabalho já é complicado, no meio esportivo as dificuldades só aumentam. Até porque neste último estrutura, apoio e profissionalização são a exceção da exceção.
Ainda sobre o trabalho “normal”, um estudo da Fundação Getúlio Vargas de 2017 apontou que, depois de 24 meses, um pouco menos da metade das mulheres que obtiveram licença-maternidade ficaram de fora do mercado.
E olha que a lei trabalhista e o regime CLT impedem a demissão, destituição e diminuição salarial por conta da gestação. Se transportarmos a lógica para o esporte, com contratos amadores e semi-amadores, a situação é tão desoladora para as mães em potencial que é até difícil de colher números.
É só olhar para o caso da oposto Tandara. A jogadora, dona de duas das três maiores pontuações da história da Superliga, teve que ir à justiça conta o ex-time, o Praia Clube, depois da absurda diminuição salarial por conta da sua gravidez.
Diante de um desamparo quase completo em relação a uma possível maternidade, a maioria das atletas opta por adiar a gestação ou mesmo antecipar uma aposentadoria para poder, enfim, seguir o sonho de ser mãe.
Para se ter noção, no futebol, a única mãe a jogar na Seleção Brasileira é a lateral Tamires, que desde 2018 joga no Corinthians. A jogadora teve uma gravidez inesperada aos 21, se afastou do futebol por quatro anos e conseguiu aos poucos retomar a carreira, que decolou de vez entre 2016 e 2017.
A gravidez no esporte internacional e o que diz a ciência
Que fique claro, a questão não é exclusividade do Brasil. O levantamento de 2017 da FIFPro, a Federação Internacional de Jogadores de Futebol, mostrou que apenas 2% das quase 4000 jogadoras profissionais são mães.
Na Copa do Mundo de 2019, a “classe” representava apenas 1% das competidoras. Sem falar do caso dos contratos das jogadoras na Espanha, que possuem em sua maioria cláusulas de rescisão por conta da maternidade.
Ao olhar para o que diz a ciência, é difícil não pensar que haja um grave componente social nas relações profissionais com as atletas que são mães. Basicamente, o único porém da gravidez é o impedimento da atividade intensa e competitiva durante a gestação em si.
Pós-parto, a mulher tem total capacidade de recuperar a forma e o desempenho, contanto que respeitado um período de recuperação. Tandara, por exemplo, voltou a jogar um pouco mais de um mês de dar a luz. Tamires é, desde meados de 2017, uma das melhores do mundo em sua posição.
O feito histórico das mães no tênis
Talvez o melhor exemplo dessa recuperação após a gravidez foi dado no tênis. No US Open 2020, Serena Williams, Victoria Azarenka e Tsvetana Pironkova fizeram história. Mães, todas as três alcançaram as quartas de final do Major estadunidense, um recorde no circuito.
Das três, Azarenka acabou avançando à final, inclusive enfrentando Serena nas semis. O título acabou ficando com a jovem Naomi Osaka, mas a campanha em si do trio, composto inteiramente por atletas acima dos 30 anos, não deixa dúvidas sobre a capacidade dessas atletas de se reinserir no esporte de alto desempenho.
Ainda que todas tenham méritos indiscutíveis, é fato que elas tiveram apoio da WTA. Em 2018, após pressão de Serena, a Associação reviu as regras do chamado ranking protegido.
Dali em diante, uma tenista que se retirasse do circuito por conta da maternidade teria resguardado seu direito às cabeças de chave de Grand Slams, se assim sua colocação prévia à gravidez permitisse.
Serena Williams foi a quem melhor aproveitou a mudança. Venceu apenas o Aberto de Auckland em 2020, mas desde então chegou à outras cinco finais de Grand Slams.
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Kim Clijsters, a melhor mãe do tênis?
Antes delas, Kim Clijsters foi uma das “grandes mães” do tênis. A belga, que em 2003 chegou a liderar simultaneamente os ranking de simples e de duplas, aposentou-se em 2006 e teve um filho em 2008.
Ela acabou retomando a carreira em 2009 e venceu outros três Grand Slams: o US Open de 2009 e de 2010 e o Australian Open de 2011. Aposentou-se novamente em 2012 e, pasmem, voltou mais uma vez ao circuito em 2019.
Antes dela, porém, a maior de toda as tenistas, no geral. Margaret Court, dona de incríveis 24 títulos de Majors em simples, levou três em 1973, um ano após o nascimento de seu primeiro filho. Nas duplas, conquistou outros quatro GS, três em 1973 e o derradeiro, em 1975.
Os desafios da maternidade no esporte de alto rendimento
É possível que o histórico de comando feminino da WTA (que na metade de 2020 voltou a ser presidida por um homem) tenha influenciado na proteção às tenistas da elite do circuito que são mães.
O suporte, ainda assim, não acaba com os desafios da maternidade no tênis ou em qualquer outro esporte de alto rendimento. Por mais que seja cientificamente comprovado a capacidade do corpo feminino de recuperar sua forma após o parto, não quer dizer quer seja algo fácil.
Além de força de vontade para retomar o potencial físico de antes, é preciso também de planejamento. Contando gestação e licença, a atleta pode encarar pelo menos onze meses fora de ação.
É complicada a decisão do momento ideal para uma atleta ter filhos. É preciso mediar o auge físico para o esporte e para a gestação, calendário de competições, momento e segurança financeira e, claro, a disponibilidade do parceiro ou da parceira.
Por isso, é comum que as atletas olímpicas optem por entrar na maternidade logo após os Jogos. O primeiro ano do ciclo olímpico costuma ser tranquilo e há tempo de sobra para recuperar o tempo “perdido”.
Seria o caso, por exemplo, da central Fabi, da Seleção Brasileira de Vôlei, se as Olimpíadas de Tóquio não tivesse sido adiadas por conta da pandemia do novo coronavírus.
A paternidade e a maternidade no esporte
Mas, como diria o apresentador, não é só isso! E após a licença-maternidade? A rotina de uma atleta de alto nível é bastante puxada, com muitas viagens e compromissos.
E a diferença para os homens, antes que você pergunte, é justamente a maneira com a qual a maternidade é encarada pela sociedade, de algo com maior carga, mais responsabilidade, algo quase exclusivo à mãe.
A lateral Tamires, por exemplo, disse que cansou de dar entrevistas sobre a maternidade e dos questionamentos da conciliação da tarefa dupla. Quantas vezes vimos a mesma cobertura com a paternidade?
A Seleção Brasileira de Futebol que foi à Copa do Mundo de 2018, por exemplo, era formada por 32 pais. Não houve uma pergunta sequer quanto aos compromissos com os filhos “lá em casa”.
O patrocínio de atletas após a maternidade
Fazendo um recorte específico nas atletas de alto nível, há ainda outro ponto que pode ser um complicador: o patrocínio. É infelizmente comum que marcas diminuam ou cortem o apoio àquelas que optem pela maternidade durante suas carreiras.
Recentemente, foi preciso que Allyson Felix, a corredora que igualou o recorde de Usain Bolt no Mundial de Atletismo apenas 11 meses após dar a luz, se manifestasse publicamente para que a sua antiga patrocinadora, a Nike, interrompesse a discriminação dos seus patrocínios às mães.
O que aconteceu com ela e com diversas outras esportistas foi a repentina diminuição ou mesmo o encerramento do aporte financeiro após o anúncio da gravidez ou mesmo da intenção de engravidar.
Depois que Felix publicou uma carta no New York Times, a empresa americana anunciou que suspenderia por um ano as cláusulas de desempenho para as atletas que entrassem na maternidade, contando inclusive somente após o parto.
Como a própria Allyson externou, se ela, que era ela, foi assim tratada, imagina só para esportistas de menor expressão?
A maternidade e a eterna luta por igualdade
São, enfim, diversas as facetas da maternidade no esporte, mostradas em exemplos de combate, de apoio ou mesmo de despreparo e até de discriminação.
O que, no entanto, parece unir essa questão é a compreensão de que a luta das mulheres por igualdade e por condições justas e dignas no esporte segue, seja por dever, seja pelo direito de viver a vida atrás de mais de um sonho.
Atletas que são mães
- Serena Williams
- Sheila Castro
- Victoria Azarenka
- Tsvetana Pironkova
- Tamires
- Camila Brait
- Tandara
- Candance Parker
- Jaqueline Carvalho
- Kim Clijster
- Allyson Felix
- Phoebe Wright
- Alex Morgan
- Juliana Veloso
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*Última atualização no dia 15 de outubro de 2020
Jornalista formado pela UNESP, foi repórter da Revista PLACAR. Cobriu NBB, Superliga de Vôlei, A1 (Feminino), A2 e A3 (Masculino) do Campeonato Paulista e outras competições de base na cidade de São Paulo. Fanático por esportes e pelas histórias que neles acontecem, dos atletas aos torcedores.