*Texto escrito pelo jornalista Gabriel Andrade
Quando sentou no cockpit de sua McLaren antes do início do Grande Prêmio da Austrália em 2007, Lewis Hamilton tinha uma certeza: sua margem para erro era bem pequena.
O piloto chegou até ali numa trajetória incomum e bastante diferente de seus companheiros de Fórmula 1. Longe de pertencer a uma linhagem de pilotos ou a uma família abastada, o inglês teve de contar com seu enorme talento e com o suporte de uma equipe para triunfar no automobilismo.
Ele não decepcionou, conquistou o terceiro lugar e subiu ao pódio logo em sua primeira corrida. A primeira vitória veio ainda na temporada de estreia, no GP do Canadá, e mais duas primeiras posições ainda seriam conquistadas durante aquele ano.
O título em 2008 contra o brasileiro Felipe Massa — em uma disputa que se resolveu apenas na última curva, na última volta da última corrida do ano — coroou sua ascensão meteórica.
Agora, com o status de segundo maior campeão da história da Fórmula 1, o hexacampeão mundial luta para transformar o automobilismo também fora das pistas e torná-lo um esporte mais diverso.
Os primeiros passos de Lewis Hamilton
A história de Lewis Hamilton no automobilismo começou, como a de diversos outros garotos, por influência do pai. Em 1991, Anthony Hamilton presenteou o filho com um carrinho de controle remoto. Como resultado, ainda aos 5 anos de idade o pequeno Lewis começou a disputar — e vencer — competições adultas de carros controlados remotamente.
Aos 6 anos, Hamilton recebeu um kart de presente de natal. Após completar 8 anos, ele e o pai mergulharam de cabeça nas competições do circuito de kartismo inglês. Anthony abandonou seu emprego formal na área de TI para poder acompanhar e dar suporte ao filho nas competições.
O dinheiro era curto, o esporte era caro e a família Hamilton estava longe de ser abastada, como a de grande parte dos jovens pilotos da modalidade. Nas categorias iniciais do automobilismo, o investimento familiar é, na maioria das vezes, a regra entre os pilotos.
Atualmente, as cifras dos orçamentos para temporada podem variar entre centenas de milhares ou até os milhões de reais.
Esse contexto fez com que o pai de Hamilton tivesse de fazer diversos malabarismos para o filho poder continuar correndo. Entre manter três empregos ao mesmo tempo e hipotecar duas ou três vezes a casa em que a família morava, os primeiros anos na modalidade foram marcadas por uma constante incerteza.
A sorte começou a sorrir para o futuro campeão após quatro anos rodando pela Inglaterra em competições de kart. Já bicampeão nacional, Hamilton assinou com um programa de desenvolvimento de jovens pilotos da McLaren. O contrato garantia o suporte financeiro que ele e seu pai precisavam para seguir com o sonho.
A chegada de Lewis Hamilton na Fórmula 1
Lewis seguiu vencendo corridas e conquistando campeonatos em diferentes categorias, sempre como o único piloto negro no grid. Até que para a temporada 2007, após conquistar o título da GP2, o britânico assumiu o posto de segundo piloto da McLaren.
Na temporada de 2007, o grande desempenho do inglês, fazendo a melhor temporada de um estreante na história, ficou ofuscado pela perda do título na reta final do campeonato.
O momento mais lembrado é o da escapada na entrada dos boxes no GP da China, que custou os pontos que o garantiriam o troféu. As vitórias de Kimi Räikkönen na duas últimas corridas confirmaram um título inesperado ao finlandês, com apenas dois pontos de vantagem sobre o estreante britânico.
A rivalidade criada entre Hamilton e Fernando Alonso foi um dos pontos altos da temporada 2007 da Fórmula 1. Porém, também culminou nas primeiras ofensas diretamente racistas que Lewis sofreu durante sua carreira na F1.
Foi uma temporada de muita disputa dentro e fora das pistas com o espanhol, no que foi primeiro ano de Hamilton e Alonso como companheiros de equipe, com ambos os lados tomando atitudes consideradas reprováveis na época.
Durante treinos em Barcelona na preparação para a temporada 2008, um grupo de fãs do piloto Fernando Alonso praticou o chamado black face nas arquibancadas do autódromo, enquanto vestiam camisetas estampadas com a frase ‘Família do Hamilton”.
Ainda em 2008, pouco antes do GP do Brasil, um site pertencente à agência de publicidade espanhola TBWA se referia a Hamilton como half-breed — algo como meia raça ou mestiço em tradução livre — e incentivava torcedores a furar os pneus do carro do inglês antes da corrida em Interlagos.
À época, Lewis não comentava esses incidentes de cunho racista. Num texto de seu site pessoal, ele rememora seus primeiros passos no circuito:
“Quando entrei na Fórmula 1, eu tentava ignorar o fato de ser o primeiro piloto negro a correr na modalidade em todos os tempos’.
Na realidade, Hamilton foi o primeiro piloto negro a disputar uma corrida na Fórmula 1, mas não foi o primeiro a pilotar um carro da modalidade. Em 1986, o americano Willy T. Ribbs foi convidado pela equipe Brabham para realizar testes no Autódromo do Estoril, em Portugal.
Ribbs vinha de participação nas seletivas das ‘500 milhas de Indianápolis’ daquele ano, mas não conseguiu uma vaga na equipe para disputar o campeonato de 1987. Na época, o convite foi visto como uma jogada de marketing do dono da Brabham, Bernie Ecclestone.
Contudo, fato é que Hamilton foi muito além do que Willy T. Ribbs já havia alcançado. Após conquistar o título de 2008, vieram ainda o bicampeonato em 2014 e 2015 e o atual tricampeonato em 2017, 2018 e 2019.
Os seis títulos colocam Hamilton como o segundo maior campeão na categoria, atrás apenas de Michael Schumacher. O inglês também detém a segunda posição no número total de vitórias na categoria, estatística que também é liderada pelo alemão.
Foi apenas com o passar dos anos e com um amadurecimento tanto pessoal, quanto profissional, que Hamilton passou a sentir mais segurança para se posicionar a respeito de questões raciais e também para se tornar ativista de outros temas.
Ele se envolveu em campanhas em defesa do meio ambiente, inclusive se solidarizando com as queimadas na Amazônia que tem permeado o ano de 2020. Além disso, o inglês é vegano desde 2017, quando abriu um restaurante especializado em Londres.
Embora sejam questões importantes, elas não enfrentavam rejeição dentro do mundo da F1. A categoria tem investido em se tornar mais verde, utilizando motores híbridos, que misturam energia de elétrica e de combustão.
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Hamilton e o movimento antirracista da Fórmula 1
As questões raciais representam um assunto muito mais espinhoso, e Hamilton parece ter consciência de que só tem plena liberdade para se posicionar por estar no topo.
Ele aproveita sua posição para se envolver em projetos que visam uma maior inclusão dentro da modalidade, como nas cobranças que tem feito à Federação Internacional de Automobilismo.
O piloto britânico pressiona para que a entidade aplique medidas práticas para a redução da barreira de entrada do esporte, principalmente na redução de custos das categorias de kart, que é o primeiro passo no automobilismo para a grande maioria das crianças.
O zeitgeist gerado pelo black lives matter foi responsável por proporcionar o momento de maior atuação política do hexacampeão na questão racial.
O movimento começou nos Estados Unidos, com eclosão de protestos em todo o país após o assassinato de George Floyd, um homem negro, pelo policial branco Derek Chauvin. As manifestações, que insurgiram após o vídeo do homicídio circular extensamente pelas redes sociais, se espalharam pelo globo.
Hamilton participou ativamente do protesto do movimento em Londres e fez um post com um longo texto em seu Instagram no qual falava sobre como lidou com racismo desde o começo de sua carreira:
“Falei muito pouco sobre minhas experiências pessoais porque me ensinaram a engolir, a não mostrar fraquezas, a matá-los com amor e batê-los na pista. Mas quando eu estava longe das pistas, eu sofri bullying e apanhei, e a única maneira de parar isso era aprendendo a me defender, e por isso optei pelo karatê. Os efeitos psicológicos negativos disso não podem ser mensurados”.
A atuação de Lewis gerou reações de pessoas do universo da F1. Bernie Ecclestone, ex todo poderoso da modalidade, afirmou em entrevista à CNN que “algumas vezes, pessoas negras são mais racistas que brancas”.
Hamilton prontamente respondeu em seu Instagram chamando-o de “ignorante e mal-educado”, além de dizer que agora percebia porque tão pouco tinha sido feito em relação à diversidade e ao racismo.
A Fórmula 1 declarou que discordava totalmente dos comentários de seu ex-presidente — Ecclestone comandou a modalidade entre 1978 e 2017, quando o Formula One Group foi vendido para a Liberty Media.
Os próximos passos de Hamilton e a diversidade na Fórmula 1
Com Lewis Hamilton na dianteira, a Fórmula 1 tenta caminhar para que o piloto não seja apenas ‘o cara’, mas também ‘a cara’ da modalidade, ao ter mais pilotos e também ‘pilotas’, parecidos com ele. A reivindicação por oportunidades para mulheres dentro da categoria é uma das mais antigas dentro da modalidade.
Apenas cinco mulheres já participaram de GPs da categoria mais tradicional do automobilismo. Entre elas, a de maior destaque foi Lella Lombardi, com 17 corridas no currículo e, até hoje, a primeira e única mulher a pontuar dentro da modalidade.
Mas isso aconteceu entre 1974 e 76, e não há mulheres participando do grid de largada desde 1992. Apesar de termos bons prospectos e resultados importantes sendo alcançados em outras categorias, a tendência é que não veremos alguém do sexo feminino pilotando uma Ferrari ou uma McLaren em um futuro próximo.
A cobrança por mudanças, porém, não se restringe aos pilotos. Todo o circuito é bastante homogêneo. Entre chefes de equipe, engenheiros, mecânicos, entre outros, é raro encontrar pessoas negras ou mulheres.
Um momento importante aconteceu no GP da Estíria neste ano. A engenheira Stephanie Travers subiu ao pódio para receber o troféu representando a equipe da McLaren. Natural do Zimbábue, ela foi a primeira mulher preta a subir ao pódio da Fórmula 1 e festejou a conquista ao lado de Lewis Hamilton.
Esse período de transformações pelo qual passa a Fórmula 1 é uma resposta a pressões da sociedade e de membros do universo da alta velocidade, mas também possui um pano de fundo comercial importante.
Desde meados de 2017, quando foi adquirida pelo grupo americano Liberty Media, a Fórmula 1 tem passado por importantes transformações.
Ao se ver acuada pela competição não apenas com os outros esportes, mas também com a enorme popularização que os e-sports vivenciaram nos últimos anos, a modalidade viu seu público envelhecer, mesmo com o grid sendo composto em boa parte por jovens, e passou a conviver com críticas por sua frágil atuação nas redes sociais.
A busca por diversidade de etnias e de gênero entra como mais um dos desafios que a modalidade precisa encarar para superar o passado e encontrar seu lugar no futuro. Uma boa parte dos esportes e e-sports também recebem cobranças por inclusão e diversidade, mas, em geral, há muito mais heterogeneidade do que na Fórmula 1.
No grid atual, apenas Hamilton e o britânico-tailandês Alexander Albon possuem uma ascendência que difere do padrão europeu que domina a categoria. Quem sabe isso não demore tanto para mudar?
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*Última atualização em 15 de julho de 2020
Jornalista pela Unesp/Bauru, Gabriel Andrade realizou coberturas envolvendo times de futebol no interior de São Paulo. Acompanha principalmente futebol e basquete, mas acredita que nenhuma experiência supera assistir um esporte aleatório perdido numa madrugada olímpica.
Jornalista formado pela UNESP, foi repórter da Revista PLACAR. Cobriu NBB, Superliga de Vôlei, A1 (Feminino), A2 e A3 (Masculino) do Campeonato Paulista e outras competições de base na cidade de São Paulo. Fanático por esportes e pelas histórias que neles acontecem, dos atletas aos torcedores.