Há uma eficiência em falar de mulheres dirigentes do futebol. Mirando nelas, é possível acertar em toda a desigualdade de gênero no futebol em suas raízes mais profundas.
Fora que não há o menor espaço para questionar a presença feminina em diretorias de clubes. Pelo menos não para argumentos que não carreguem ideias machistas e outras visões sociais atrasadas.
Os casos de mulheres dirigentes que conseguiram se inserir no futebol profissional só reforçam essas teses. Primeiro pela baixa frequência com que acontecem. Depois, pelo seu sucesso absolutamente natural.
Olhando, inclusive, alguns desses casos mais de perto, é possível enxergar os pontos que permeiam as atividades profissionais femininas no universo da bola, das vantagens aos impedimentos, passando pelo tamanho do impacto dos valores da sociedade no âmbito esportivo.
Por tudo isso, vamos mostrar neste neste texto as mulheres dirigentes do futebol europeu e do brasileiro. Mais do que isso, o quanto que o esporte tem a ganhar com profissionais como elas e o porquê disso não acontecer.
Quem são as mulheres dirigentes do futebol europeu
Quem nunca teve curiosidade de saber o que falam os jogadores no vestiário? Hoje em dia, os dirigentes passam pela mesma coisa, só que no “vestiário digital” que é o Whatsapp. Não são todos, porém.
Além de ser a única mulher, Kathleen Kruger é a única profissional da diretoria do Bayern de Munique a fazer parte do grupo de “zap” exclusivo dos jogadores bávaros.
No Bayern desde 2009, Kathleen é a general manager do clube alemão e a única mulher dirigente na primeira divisão da Bundesliga.
Responsável por toda a logística e planejamentos que envolvem a rotina dos atletas, a alemã é um sucesso entre os jogadores e também entre comissão técnica e diretoria.Tanto que cresceu de uma assistente geral à pessoa que decide todo o dia a dia do clube.
Recentemente teve adicionada à descrição do cargo a coordenação das comunicações durante as partidas do time profissional. Kathleen, portanto, está em absolutamente todos os momentos do Bayern, nos treinos, nos ônibus e até no banco de reservas.
Sua presença a fez ganhar destaque — e alguns banhos de cerveja — na últimas conquistas bávaras, principalmente a da Liga dos Campeões 2019/2020. Ela foi, afinal, a pessoa da logística durante a bolha das fases finais, o Final 8.
O prestígio e a realidade de Kathleen Kruger no Bayern de Munique
Porém, por trás de todo o prestígio conquistado há algumas questões que tangem a realidade feminina no futebol. Além do já mencionado pioneirismo na elite alemã, a dirigente tem, de longe, a mais estressante rotina do clube.
Mesmo depois de mais de uma década no cargo, Kathleen continua tendo de ficar permanentemente à disposição das demandas do clube e dos jogadores. Ao menos há o reconhecimento por parte dos boleiros. Assistentes que é bom…
Há ainda a história de como chegou ao cargo. Longe de um conto de fadas, a GM foi jogadora do Bayern de Munique no começo do século e aposentou-se aos 24 por não ganhar suficientemente bem. Isso num dos maiores clubes do mundo.
Depois de estudar logística e administração, tornou-se assistente após um período de teste na organização da equipe feminina. Mais para frente, teve de ser “protegida” pelo ex-treinador Jupp Heynckes para não ser demitida por puro capricho de uma gestão que tinha acabado de começar.
O poder de Marina Granovskaia no Chelsea
Dilema similar ao de Kathleen Kruger vive a diretora executiva de futebol do Chelsea, Marina Granovskaia. Poderosa dentro do clube, ela comanda desde 2010 todas as milionárias negociações dos Blues.
Conhecida pela dureza nas negociações, Marina foi a grande responsável por repaginar as políticas de contratação do time londrino. Se antes os cheques eram assinados sem muito critério pelo proprietário Roman Abramovich, depois da russa-canadense eles eram resultados de estratégias mais realistas.
O Chelsea passou a comprar na baixa e vender na alta. A compra de Diego Costa por € 35 milhões e a venda de David Luiz por € 50 milhões, ambas em 2014, são dois grandes exemplos do novo modus operandi.
Mais para frente, houve o mercado de alto nível que o clube fez em 2020. Com Marina na ponta, os Blues venceram a concorrência pelas joias alemãs Havertz e Werner, convenceram o Leicester a vender o lateral Ben Chilwel por um preço normal e ainda levaram um Thiago Silva livre no mercado.
Ainda assim, apesar de tudo isso, a dirigente ainda tem o seu poder visto apenas pela relação de confiança que tem com Abramovich. O proprietário a posiciona como sua extensão no dia a dia em Londres.
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As mulheres no futebol espanhol
Sob a ótica de gênero, o futebol espanhol é um dos mais difíceis de entender. La Liga feminina é uma das maiores do mundo, com Barcelona e Atlético de Madrid como verdadeiras potências, mas que só passou a ter o Real Madrid em 2020.
Os públicos e as audiências também estão entre as melhores na média mundial. Ainda assim, só em 2020 que as jogadoras conseguiram um acordo coletivo para um salário mínimo e licença-maternidade.
No meio disso, dois casos são referências, só que no futebol masculino: Leganés e Eibar. Ambos são geridos por mulheres.
Desde 2008 que Maria Victoria Pavón é presidente do Leganés. Com formação em administração esportiva, adquiriu o clube e o levou da terceira à primeira divisão em menos de dez anos.
As mulheres dirigentes do Eibar
Pavón compartilha da mesma visão de Amaia Gorostiza, presidenta do pequeno Eibar. Foi com o mesmo “pé no chão” que a colega de profissão que a basca fez o clube alcançar sua melhor campanha da história e se consolidar em La Liga.
O caso do Eibar, no entanto, é especial. Primeiro porque Amaia foi de fato eleita e reeleita para o cargo, em 2016 e em 2017. Depois, o clube do País Basco talvez seja único no mundo no que diz respeito ao seu quadro de funcionários. 53% dele é formado pelo sexo feminino. Mais: são cinco mulheres em posições administrativas.
Sim, Amaia trouxe algumas das dirigentes durante seu mandato. A escolha, porém, é muito mais cultural do que ideológica. A cidade de Eibar em si tem uma tradição, datada do começo do século XX, de uma inserção acima da média de mulheres no mercado de trabalho.
Ainda seja uma exceção, o caso das mulheres dirigentes do Eibar reforça positivamente a tese de que o que acontece no futebol é um reflexo do que pensa e do que faz a sociedade civil.
O cenário das mulheres no futebol masculino brasileiro
No Brasil não há uma tese mas uma realidade escancarada. Uma pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) mostrou que há apenas 1,6% de mulheres em cargos executivos de futebol.
A projeção é até pior do que o mercado de grandes empresas, que têm 13,6% de mulheres tomando decisões. E olha que este é um recorte de um ambiente ligeiramente mais progressista.
A pesquisa mostra também que dá para literalmente contar nos dedos as dirigentes do futebol brasileiro.
De Minas Gerais, que tem uma longa história com o futebol feminino, temos a presidente do Tupi, Myrian Fortuna, que levou o time da Série D à B em dois anos mas que, depois de dois rebaixamentos, se manteve no cargo em 2020 somente por decisão judicial.
Do Rio de Janeiro, dois casos: a diretora Flavia Seifert, da Cabofriense, e a ex-presidente do Flamengo Patrícia Amorim. Se Flávia relata a convivência diária com a discriminação, Patrícia afirma que as críticas à sua gestão eram baseadas em puro machismo.
A ex-nadadora foi de fato uma das responsáveis pela crise financeira do Fla no começo da década de 2010. Ao mesmo tempo, foi a sua gestão trouxe ninguém menos que Ronaldinho Gaúcho para a equipe e que potencializou os esportes olímpicos rubro-negros.
Os caminhos para uma mulher dirigente no futebol brasileiro
Para o futuro, há somente a projeção da empresária Leila Pereira, dona do banco Crefisa e da Faculdade das Américas. Ela pode ser presidente do Palmeiras em 2022.
A “Tia Leila”, como é conhecida pela torcida palmeirense, cresceu nos bastidores do clube após os investimentos diversos em jogadores, em patrocínio, em estrutura, até na ala de carnaval da Mancha Alviverde, a principal torcida organizada do time paulista.
Assim, se considerarmos que Patrícia Amorim era uma bem-sucedida atleta no Flamengo e que Myrian vinha de uma dinastia familiar de mandatários do Tupi, vemos que são poucos os caminhos profissionais para as mulheres dirigentes no futebol brasileiro.
Ainda que o meio da bola seja de fato fechado, a mesma dificuldade não é vista para homens, que conseguem se inserir nesse mercado por maneiras mais tradicionais, como indicações ou cursos.
O exemplo do futebol feminino
Se depender do futebol feminino, há uma luz no fim do túnel brasileiro. O crescimento da modalidade — que em 2019 bateu recordes de público nos estádios, de audiência na TV e de faturamento nos clubes — está claramente atrelado à presença de mulheres em cargos executivos.
O Corinthians, por exemplo, é gerido por Cristiane Gambaré e tem um dos mais sólidos projetos do país. O Santos, outra referência, tem em Emily Lima a sua treinadora. O futebol paulista, aliás, foi um dos grandes vetores desse protagonismo feminino.
Diretamente do executiva da Federação Paulista (FPF), a ex-jogadora Aline Pellegrino assumiu a coordenação de competições de futebol feminino da CBF.
O movimento, sem precedentes, foi acompanhado da contratação de Duda Luizelli, ex-Internacional de Porto Alegre, para a chefia das seleções, além do anúncio do fim da discriminação de gênero no pagamento das atletas que vestirem a Amarelinha.
As novas diretoras do futebol feminino brasileiro, assim como as do futebol masculino mundial, só mostram que basta ser bem preparado para fazer um bom trabalho. Qualquer outra distinção além de currículo, experiência e formação, bom, vocês já sabem.
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*Última atualização no dia 21 de outubro de 2020
Jornalista formado pela UNESP, foi repórter da Revista PLACAR. Cobriu NBB, Superliga de Vôlei, A1 (Feminino), A2 e A3 (Masculino) do Campeonato Paulista e outras competições de base na cidade de São Paulo. Fanático por esportes e pelas histórias que neles acontecem, dos atletas aos torcedores.