Manifestações políticas no esporte não são necessariamente comuns. Mas também não são exatamente raras. São, isso sim, naturais. Ou pelo menos deveriam ser assim encaradas.
O meio do esporte é intrinsecamente político. Ele comunga toda uma multiplicidade de agentes que são diversos entre si e que se expressam de maneira diferente e ainda nos quais a política incide e influencia de maneira diferente.
Dirigentes, por exemplo, têm um papel político pragmático e diplomático ao lidar com políticos de fato, quando não são eles mesmos parte dessa “classe”. A torcida é basicamente ideológica, expressando-se individualmente ou coletivamente e se agrupando por aproximações culturais.
Agora os atletas que têm uma questão diferenciada. Protagonistas do esporte, são seres políticos, com opiniões e lados como qualquer um, mas numa eterna divisão entre as responsabilidades cívicas e profissionais.
O caso da jogadora de vôlei de praia Carol Solberg explicita bem essa questão, além de trazer à tona a discussão sobre as manifestações políticas no esporte.
Montamos, assim, um texto para contribuir com o debate, lembrando de casos icônicos e dos papéis de cada um dos agentes políticos nesse ambiente esportivo.
O caso Carol Solberg
No dia 20 de setembro de 2020, Carol Solberg empunhou o microfone do Sportv 2 e gritou, ao final da entrevista dada ao canal, “Fora, Bolsonaro!”.
Carol tinha acabado de conquistar, junto de sua parceira Talita, a medalha de bronze da etapa de abertura do Circuito Brasileiro de Vôlei de Praia — a primeira desde a paralisação do esporte por conta da pandemia do novo coronavírus.
O que era para ser apenas uma manifestação, segundo ela, espontânea, tornou-se um turbilhão político, ideológico e legal. No dia seguinte, a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) divulgou uma nota repreendendo a atleta e foi endossada pela Comissão de Atletas.
Se as respostas institucionais causaram espanto à atleta e à parte da mídia esportiva, a denúncia do Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) na semana seguinte comoveu ao ponto da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) entrarem no processo e até da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) enviar seu presidente, Felipe Santa Cruz, para defendê-la.
Em jogo no julgamento, estava uma possível punição de até seis partidas de suspensão mais uma multa de até R$ 100 mil. Mais: a própria liberdade de expressão dos atletas e, ora, de todo o meio do esporte.
Regras sobre manifestações políticas no esporte
Carol Solberg foi denunciada com base em dois artigos do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD). O artigo 191 fala sobre o comprimento da regulamento das competições. O 258 discursa sobre “assumir qualquer conduta contrária à disciplina ou à ética desportiva não tipificada pelas demais regras”.
O problema é pouca clareza dessa tal “ética desportiva não tipificada”. Soma-se ao fato a fala do procurador do STJD, Wagner Vieira Dantas, que diz a ter denunciado pela regra do campeonato que proíbe a manifestação na arena do jogo, e não necessariamente pelo conteúdo da fala em si. Uma confusão só.
Até porque há, como bem apontou o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF-RJ) em despacho no começo de outubro, questões político-econômicas que extrapolam a discussão do direito de Carol: o patrocínio do Banco do Brasil ao Circuito Nacional de Vôlei de Praia.
O banco estatal, que registrou lucro recorde no primeiro trimestre de 2020, é naturalmente ligado ao governo atual e diz-se que até ameaçou cortar os investimentos no esporte pelo caso.
Não que o direito de Carol Solberg de expressar-se não seja importante. É que é uma discussão que, segundo o Supremo Tribunal Federal, nem deveria acontecer.
Depois de julgar, em 2016, um ponto da Lei das Olimpíadas, o STF deixou claro que qualquer regulamento desportivo não pode sobrepor os direitos previstos na Constituição, no caso específico o da liberdade de expressão.
No fim das contas, o julgamento de Carol Solberg pode ser útil de um ponto de vista legal. A questão da Lei das Olimpíadas tratava inicialmente de manifestações de torcedores, que estavam sendo reprimidos em suas manifestações silenciosas durante os Jogos do Rio.
O processo de Carol poderia criar uma jurisprudência específica para os casos de atletas que, exatamente por passar por esse tipo de constrangimento, dificilmente se posicionam sob questões políticas e sociais.
No fim, a decisão foi para uma pena mais branda do que a possível, mas não menos impactante. Em tom de “advertência”, o resultado do julgamento, que saiu no dia 13 de outubro de 2020, proibiu Carol Solberg de se manifestar outra vez nos estádios e durante partidas.
Episódios de manifestação política no esporte
As manifestações políticas no esporte por parte de atletas, entidades e clubes não são lá muito comuns mas, como falamos, também não são raras. Lembramos alguns dos principais casos aqui no Brasil.
A Democracia Corintiana
Talvez o maior e mais conhecido exemplo de posicionamento político no esporte brasileiro seja o do Corinthians nos anos 1980. O período, conhecido como Democracia Corintiana, mobilizou atletas, funcionários e dirigentes a não só discursar e se posicionar à favor da democracia em pleno período de ditadura militar como também exercê-la no dia a dia do clube.
A Esportelândia relembrou o período com detalhes:
Democracia Corintiana: a história, as lutas e os títulos
Homenagem do Vasco a Marielle
Quatro dias após o assassinato da vereadora Marielle Franco e do seu motorista, Anderson Gomes, em março de 2018, o Vasco levou, ao entrar no campo antes da partida contra o Botafogo, uma faixa homenageando a dupla.
O ato foi político no momento que a suspeitas do assassinato seguiam (e ainda seguem) sendo por motivações políticas e dentro de um contexto de polarização ideológica ao ponto de opositores de Marielle e de seu partido, o PSOL, questionarem a idoneidade da vereadora.
A crítica de Raí a Bolsonaro
Em abril de 2020, Raí, ex-jogador e atual dirigente do São Paulo, criticou a postura do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia do novo coronavírus, sugerindo inclusive a sua renúncia do governo em caso de perda de governabilidade durante a crise.
O caso ganhou notoriedade após o comentário em tom de censura do comentarista Caio Ribeiro da Rede Globo e da resposta do colega Casagrande em defesa da liberdade de expressão de Raí e de atletas.
Joana Maranhão se posiciona antes do Pan de 2015
Em 2015, poucos meses antes dos Jogos Pan-Americanos de 2015, a nadadora Joanna Maranhão se posicionou em relação ao momento político vivido na época, teceu críticas ao Presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha e ainda disse que não representaria os apoiadores deste e dos então deputados Marco Feliciano e Jair Bolsonaro.
Apoio a Bolsonaro no futebol e no vôlei
Em 2018, algumas manifestações de atletas a favor de Jair Bolsonaro, na época ainda candidato à presidência, chamaram a atenção. No futebol, Felipe Melo, do Palmeiras, e Diego Souza, do São Paulo, dedicaram gols ao hoje presidente. No vôlei, Maurício e Wallace fizeram o número 17 em foto publicada nas redes da CBV.
A maneira com a qual se manifestaram foi pacífica e amigável, mas, ainda assim, ilegal. Simplificadamente falando, a lei eleitoral proíbe que figuras públicas se manifestem, em redes de televisão, em relação à candidatos durante a época de eleições.
O caso dos jogadores de vôlei, aliás, foram lembrados no despacho do MPF em resposta à denúncia do STJD no caso Caro Solberg. Nenhum deles, é bom lembrar, sequer foi repreendido.
As manifestações políticas da torcida
No Brasil, as manifestações políticas no esporte são muito mais comuns por parte das torcidas, principalmente as de futebol. Ao longo da história do país, foram diversas manifestações de torcedores, pelo menos desde a reabertura política.
Na verdade antes mesmo a Gaviões da Fiel, maior organizada do Corinthians, pediu em cartazes a anistia dos presos e exilados políticos durante a ditadura. Bem mais pra frente, a mesma Gaviões se posicionou em relação ao caso de desvio verba das merendas das escolas municipais de São Paulo.
Em 2020, alguns de seus membros, isto é, sem representar institucionalmente a organizada, lideraram um ato pró-democracia que chamou a atenção por ter a adesão de membros de torcidas rivais ou de torcidas de times rivais.
O posicionamento político não é exclusividade do estado de São Paulo. Em 2018, torcedores do Grêmio estenderam faixa com a frase “Lula Livre”. No ano anterior, em Minas, a arquibancada do Galo pedia “Temer jamais”.
Bem antes, os torcedores Cruzeiro também estenderam uma faixa com os dizeres “Fora Sarney” e os torcedores do Flamengo protestavam contra Paulo Maluf na época da primeira corrida presidencial da reabertura política.
Manifestações políticas no esporte internacional
O esporte internacional também é palco de importantes manifestações políticas. Nos EUA, por exemplo, muito atletas “estrelados” conseguiram, a partir de seu currículo e de seu tamanho no meio, se impor e se posicionar politicamente sem sofrer sanções.
LeBron James, por exemplo, já em 2014 fazia protestos contra a sistêmica violência policial contra a população negra do seu país. Na ocasião, usou uma camiseta estampada com a frase “I can't breathe” (Eu não consigo respirar), dita por Eric Garner, vítima dessa contestada conduta policial.
Em 2016 foi a vez Collin Kapernick, da NFL, na época quarterback do San Francisco 49ers. Pelo decorrer de toda a temporada o atleta se ajoelhou durante o hino dos EUA tocado antes de cada jogo da temporada. O ato, como ele mesmo disse, era também em protesto à violência contra a população negra norte-americana.
A luta por justiça racial, aliás, é infelizmente uma pauta recorrente das manifestações políticas de atletas estadunidenses. Em 2020, os jogadores do Milwaukee Bucks puxaram um boicote dos jogos que foi aderido por praticamente todas as principais ligas esportivas do país.
O assunto, na verdade, é universal. Em maio de 2020, seguindo as reações ao assassinato de George Floyd, um homem negro norte-americano, por policiais brancos, jogadores da Premier League e da Bundesliga se manifestaram em prol do movimento “Black Lives Matter” em comemorações de gols e em minutos de silêncio antes das partidas.
Na Fórmula 1, o inglês Lewis Hamilton trava uma luta solitária, seja pelo direito de se manifestar, seja por maior diversidade dentro da categoria. O piloto participou ativamente das manifestações do BLM em 2020 e desde então ostenta a mensagem em suas roupas sempre que possível.
Influência da política no esporte
Todos esses exemplos mostram o tamanho da influência da política no esporte.
Quem irá dizer que LeBron ou Hamilton não se motivaram para melhorar seu desempenho por suas causas? Ou que Kaepernick e Joanna Maranhão não perderam espaço em seus esportes como infelizes retaliações por seus posicionamentos?
Até o retorno é verdadeiro. Há, por exemplo, uma pesquisa mostrou que o 7 a 1 sofrido pela Seleção Brasileira na Copa do Mundo influenciou na queda de popularidade da presidenta Dilma Rousseff antes das eleições de 2014. Fora o uso das vitórias em Copas do Mundo como propaganda política…
São, enfim, inúmeras as intersecções entre política e esporte. A sua convivência, como dissemos, é natural. As expressões e manifestações que acontecem, portanto, deveriam ser igualmente compreendidas, aceitas e, francamente, até incentivadas.
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Jornalista formado pela UNESP, foi repórter da Revista PLACAR. Cobriu NBB, Superliga de Vôlei, A1 (Feminino), A2 e A3 (Masculino) do Campeonato Paulista e outras competições de base na cidade de São Paulo. Fanático por esportes e pelas histórias que neles acontecem, dos atletas aos torcedores.