Ayrton Senna é um dos maiores nomes do automobilismo mundial, mas sua idolatria pós-morte transformou o piloto em um mito, praticamente um Deus da Fórmula 1, com um status quase inalcançável. Mas não é assim para todas as pessoas.
Segundo Flávio Gomes, jornalista que acompanhou o piloto brasileiro em atividade de perto por anos, a beatificação de Ayrton Senna é insuportável e pouco se assemelha à realidade. Aos seus olhos, a história foi corrompida para fins comerciais e ideológicos.
Por outro lado, o também jornalista Rica Perrone, que tem o piloto brasileiro como o maior ídolo de sua vida e o considera um herói do povo brasileiro, acredita que Senna tinha um superpoder que nenhum herói da Marvel ou DC já teve.
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Entre o mito e o homem: quem foi Ayrton Senna de verdade?
Apesar de exatos 31 anos desde sua morte, Ayrton Senna ainda é reverenciado como um dos maiores ícones do Brasil — não apenas no esporte, mas na própria construção do imaginário nacional.
Desde sua morte trágica em 1994, sua imagem foi envolvida por uma aura quase religiosa. Monumentos, músicas, campanhas publicitárias, escolas, avenidas e até teorias espirituais foram construídas sobre seu legado.
Mas será que Senna foi mesmo esse herói absoluto, ou apenas um grande piloto transformado em mito? Essa é uma pergunta que divide opiniões, até mesmo entre jornalistas que o acompanharam de perto.
De um lado, há quem o veja como um símbolo sagrado da esperança nacional. Do outro, há quem enxergue exageros e uma narrativa moldada pelo marketing. Em qual lado você se encaixa?
“Transformaram o piloto em santo”, Flávio Gomes
O jornalista Flávio Gomes, que cobriu extensivamente a Fórmula 1 nos anos 1980 e 1990, é um dos nomes que desafia a idolatria em torno de Senna. Para ele, o piloto foi excelente — mas a forma como sua memória foi tratada após a morte é, no mínimo, problemática.
O pós-morte do Senna é irritante. O processo de beatificação do Senna é insuportável. Transformaram um piloto em um santo para se aproveitarem financeiramente de sua imagem.
De fato, a marca “Senna” hoje movimenta milhões. Camisetas, tênis, documentários, séries… A imagem do piloto é explorada com uma intensidade rara. E essa construção quase mística incomoda quem defende uma visão mais pé no chão.
O Senna era um piloto de carro de corrida, não é um herói. O Senna não entrou num prédio em chamas e pegou uma velhinha no colo para salvar. Herói é bombeiro e professor.
O monopólio da virtude sobre Ayrton Senna
Uma das críticas mais contundentes de Flávio Gomes é sobre a ideia de que Senna era “único” em virtudes como disciplina, preparo físico, sensibilidade e coragem.
Para ele, muitos outros pilotos da época também tinham essas qualidades — e em níveis semelhantes — e nem por isso são endeusados.
Parece que a única pessoa importante da história do automobilismo brasileiro foi o Senna, e não é verdade. É injusto reduzir o automobilismo brasileiro a Senna.
Flávio menciona nomes como Alain Prost, Nigel Mansell e Nelson Piquet como pilotos que, embora não tenham sido mitificados da mesma forma, também marcaram época com desempenhos memoráveis. A diferença? Não foram elevados a símbolos nacionais.
As pessoas se incomodam que alguém possa ser melhor que seu grande ídolo. Elas precisam entender que dizer que alguém era tão bom quanto ou melhor, não diminui ele.
O superpoder de Ayrton Senna, segundo Rica Perrone
Na outra ponta do debate está o jornalista e influenciador esportivo Rica Perrone, um dos defensores mais apaixonados pelo legado de Senna.
Para ele, o piloto não foi apenas um ícone do esporte, mas um verdadeiro herói nacional, alguém impossível de explicar para os mais jovens.
Ele é meu grande ídolo, o maior super-herói da minha vida! Quem assiste à série da Netflix vê um piloto extraordinário. Vê um Neymar, um Messi, um Cristiano Ronaldo, um Michael Jordan, um Kobe Bryant.
Vê uma referência esportiva, um grande piloto de Fórmula 1. E não é só isso! Só que não conseguimos mostrar para essas pessoas porque elas vivem num planeta diferente, nunca tiveram a mesma vida que nós.
Rica aponta para um abismo geracional profundo: enquanto os jovens cresceram num mundo hiperconectado, os brasileiros dos anos 80 e 90 viviam em um país isolado, limitado pela geografia e pela TV.
Era uma era de rituais coletivos, onde as manhãs de domingo tinham um único ponto de encontro: a corrida de Ayrton Senna.
Vivíamos num mundo totalmente monopolizado pela TV. Hoje, cada um vive numa bolha. Não há mais um senso coletivo como havia naquela época. Foi um momento épico com a representatividade individual de alguém.
O Senna vem num momento do Brasil muito ruim, difícil, do brasileiro vender o almoço para comprar o jantar. […] O Senna começou a ganhar e levantar a bandeira do Brasil, e isso gerou no povo uma sensação de que havia um brasileiro dando certo, alguma coisa no Brasil dava certo.
Senna, para Rica, representava algo que ia além do esporte: um símbolo de autoestima nacional em meio ao caos político, econômico e social dos anos 80 e 90. O jornalista enfatiza que Ayrton transformava o domingo em um evento feliz em família.
A gente acordava, era feliz, vibrava com ele, todo mundo se abraçava, o pai aumentava o som da TV na hora da musiquinha da última volta para o Galvão Bueno gritar.
Flávio Gomes x Rica Perrone: Ayrton Senna entre o homem e o mito
Flávio Gomes faz um contraponto interessante a essa perspectiva. Para ele, essa construção simbólica que Rica valoriza é exatamente o problema: ela afasta Senna da realidade e transforma o debate em idolatria cega.
Gostam de exaltar qualidades que parece que só ele tinha… O Senna parece, para essas pessoas, que era o detentor do monopólio da virtude, e não era. Ele era um grande piloto, mas outros também eram.
“Ah, mas ele levantava a bandeira do Brasil”. Ele fez isso pela primeira vez para zoar os mecânicos da Renault, que faziam os motores da Lotus, porque o Brasil tinha sido eliminado pela França na Copa do Mundo em 1986. Isso não faz dele patriota.
Flávio acredita que essa blindagem à crítica impede que Senna seja reconhecido por suas conquistas reais, humanas, e não por uma santidade artificial.
Por outro lado, Rica argumenta que o heroísmo de Senna não está em ser perfeito, mas em ter sido imperfeito e, ainda assim, inspirador. Ayrton tinha o poder de mexer na estrutura familiar e dar alegria em um momento desesperador do país.
O Senna mexia na nossa casa. O que ele fazia, do jeito que ele fazia, nos dava o maior presente que algum super-herói podia dar, que é dar alegria para as pessoas em família, isso não tem preço. Quando ele morreu, a gente não perdeu um ídolo, perdemos um parente.
Herói, mito ou homem comum?
A discussão é mais profunda do que parece. Não se trata apenas de discutir voltas rápidas ou títulos mundiais. Trata-se de pensar como o Brasil constrói seus símbolos.
Em um país carente de líderes inspiradores, Senna preencheu uma lacuna emocional, enfatiza Rica Perrone.
O Brasil vivia uma depressão coletiva, todo mundo em pânico com a crise financeira, éramos totalmente sucateados, desplugados do resto do mundo. Nos sentíamos um lixo.
Chega um cara e coloca o Brasil no topo do mundo. Era uma vingança, uma sensação de esperança. É marketing? Não me parece. Mas se foi, deu muito certo, porque ele era o afago que a gente tinha no domingo.
Mas é perigoso — como alerta Flávio Gomes — confundir grandeza esportiva com santidade absoluta. Isso não só desumaniza o ídolo, como distorce a forma como enxergamos mérito, esforço e falhas.
Nunca tive problema com o Senna, nunca me incomodou. Tive, durante anos, um relacionamento profissional dos mais gentis e cordiais com ele. Vi coisas espetaculares e está entre os maiores de todos os tempos.
Mas transformam ele num mártir quando ele morre ao vivo, quando todo mundo está vendo televisão. As pessoas ignoram todo o resto que se fez para transformá-lo num semideus, herói de capa e espada. Acho isso preguiçoso.
A maior façanha de Ayrton Senna
Talvez a pergunta não seja se Ayrton Senna foi ou não um herói. Talvez a questão mais importante seja: você acredita que ele foi? Por que projetamos tamanha esperança em um piloto de Fórmula 1?
É possível admirar a genialidade de Senna sem colocá-lo num pedestal? E é possível reconhecer a sua importância simbólica sem negar que era humano, com erros e defeitos?
Entre o homem e “piloto sujo”, como já foi apontado por outro piloto brasileiro, e o mito, talvez a maior façanha de Ayrton Senna tenha sido justamente despertar essa dúvida.
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