Uma das maiores riquezas do mundo do futebol reside no fato de que seu componente social é quase tão importante quanto seu aspecto lúdico. A prova disso está à mostra em clubes como o St. Pauli e o Rayo Vallecano, relevantes e cativantes apesar do seu notório e histórico insucesso desportivo.
Ainda que tradicionalmente orbitem a segunda divisão de, respectivamente, Alemanha e Espanha, St. Pauli e Vallecano contam com simpatizantes ao redor do mundo, que buscam e compram seus produtos oficiais e até os acompanham nas redes sociais — existem, ora, perfis brasileiros em homenagem a ambos.
Tudo isso, é bom dizer, sem um único título de expressão em suas histórias, tampouco com craques em seus elencos. É que se não há grandes jogadas ou grandes conquistas para se comemorar, há uma infinidade de valores para se identificar.
St. Pauli e Rayo Vallecano são conhecidos por repudiar e combater o racismo, o fascismo, a homofobia, a xenofobia e toda e qualquer ideologia discriminatória e ultraconservadora, tanto no futebol quanto na sociedade no geral.
O posicionamento desses times por si só já vale um texto, como forma de apoio à uma iniciativa que busca tornar o ambiente do futebol mais justo e tolerante. Há mais, porém. História, torcida, comunidade, enfim, ambos contam com elementos para um construir um conteúdo tão rico quanto o próprio jogo. E que você acompanha a seguir.
A história do St. Pauli: a caveira, a torcida e as faixas
Os arredores do Millerntor-Stadion em dias de jogo, seja da primeira ou da segunda divisão da Bundesliga, parecem uma festa de rua pela quantidade de gente e pela sua variedade. Punks se misturam com famílias, nerds se misturam com antifas e todo mundo se junta dentro daquele que é o estádio do Fußball-Club Sankt Pauli von 1910, o St. Pauli.
A diversidade de torcedores é reflexo direto de sua ideologia mas também de sua história. Fundado em 1910 nas proximidades das docas da cidade de Hamburgo, uma das maiores da Alemanha, o St. Pauli mudou-se nos anos 1980 para o bairro vizinho.
O local unia elementos da vida noturna dos estivadores — bares, prostíbulos e pocilgas — e da gentrificação pós-crescimento econômico alemão — galerias de arte, lojas e baladas — colocando frente a frente os intelectuais progressistas e a classe trabalhadora.
A diversidade e o estatuto do St. Pauli
Colocando essa verdadeira sopa de gente na cumbuca do Millerntor e ainda temperando com a rivalidade local com o Hamburgo, cuja história viu os partidos nacionalistas alemães se “apossarem” de sua torcida, temos um verdadeiro time de bairro ativista.
A adoção do Jolly Roger, a imagem das caveiras piratas, muito associadas com a cena punk, como bandeira, não é mero simbolismo. Já no começo dos anos noventa, o clube baniu, via estatuto, qualquer tipo de associação e apologia ao nazismo na equipe e nas arquibancadas.
O estatuto, aliás, que foi reformulado mais uma vez em 2009, incluía nominalmente a propagação da tolerância, o repúdio à ideologias discriminatórias e a proteção de “punks, prostitutas, gays e anarquistas”.
O texto foi inclusive assinado e aprovado no último ano de mandato do presidente Cornelius Littman, o primeiro e até hoje único dirigente abertamente gay do futebol alemão.
Assim como a bandeira, o estatuto não é apenas tinta no papel. A comunidade do St. Pauli se confunde com o bairro no qual está localizado e faz valer as ideias que adotam. Nas eleições nacionais de 2017, por exemplo, o partido progressita Die Linke, que contou com apenas 12% dos votos de todo país, teve na região uma esmagadora vitória por 33%.
Aliás, é a relação entre comunidade, bairro e time que melhor consegue explicar o que é o St. Pauli. O posicionamento fez o clube angariar fãs e simpatizantes e crescer, de certa forma. Ainda assim, são os residentes dos arredores do Millerntor que estão em todos os os jogos, que levam faixas, que fazem a política e a ideologia conviver com o futebol de fato.
Dessa forma, temos durante as partidas do St. Pauli o retrato perfeito do que o clube representa e de como ele funciona. Não só convivem os mais variados tipos de torcedor como as mais diferentes manifestações.
As faixas da torcida do St. Pauli
São dezenas de faixas erguidas e bandeiras hasteadas nas arquibancadas. Entre elas, símbolos antifascistas, manifestações contra a influência da televisão nos horários das partidas, repúdios à xenofobia — com o consagrado “Nenhum homem é ilegal”.
Há até frases fora do tom, como foi o caso da faixa que fez uma provocação de extremo mal gosto com a torcida do Dynamo Dresden e os bombardeios sofridos pela cidade do time durante a Segunda Guerra Mundial. Ninguém é perfeito, afinal de contas.
Mas os posicionamentos fortes — e corretos — na torcida do St. Pauli são indefectíveis. Alguns são até famosos. Houve um que inclusive apoiava a causa dos torcedores do Rayo Vallecano, o time que falaremos a seguir.
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A história do Rayo Vallecano: as causas, a camisa e o bairro
Em dezembro de 2019, a partida entre Rayo Vallecano e Albacete, válida pela segunda divisão do Campeonato Espanhol foi paralisada e depois suspensa. Na súmula do árbitro, o motivo eram os cânticos da torcida do Rayo, que chamavam um atleta do rival de nazista.
A interrupção do jogo foi bastante polêmica. Até porque não era a primeira parte da história. Em 2017, o atacante ucraniano Roman Zozulya estava perto de ser contratado pelo Rayo.
O problema foi a descoberta da ligação do jogador com movimentos de ultradireita de seu país, ligados à uma unidade paramilitar formada por neonazistas, à qual o próprio Zozulya demonstrou apoio.
A torcida do time da região de Vallecas, em Madri, liderada pela organizada “Bukaneros”, executou incessantes protestos. Faixas em jogos, manifestações nos arredores no estádio e “cerco” na sede do clube, enfim, foi pressão de todos os lados. E a contratação do atacante foi barrada.
O @RayoVallecano x Albacete foi interrompido pq a torcida de Vallecas gritou "Zozulya, puto nazista". O jogador é militante declarado da ultradireita paramilitar na Ucrânia. Não foi racismo nem homofobia. A torcida estava chamando um nazista de nazista. Qual é o problema nisso?✊ pic.twitter.com/IjQmnkzd4m
— Fernando Kallás (@fernandokallas) December 15, 2019
Os valores e a camisa do Rayo Vallecano
Mais do que um caso isolado, a ação dos rayistas segue à risca não somente os valores como o comportamento de todos aqueles que orbitam o clube.
Fundado em 1924, o Rayo Vallecano é o epicentro de um bairro operário, que une a classe média-baixa espanhola com toda a sorte de imigrantes. Essa convivência moldou os valores progressistas da região, que, por exemplo, nunca elegeu o ultraconservador Partido Popular.
O lema mais propagado no clube, para se ter noção é “Amor ao Rayo, ódio ao racismo”. O combate à homofobia é também uma pauta recorrente entre os rayistas.
O arco-íris, símbolo clássico do movimento LGBT, é muito associado ao tradicional raio amarelo do clube. Houve até uma versão do uniforme lançada substituindo a faixa transversal vermelha por uma de arco íris.
São esses valores que aproximam a torcida de um time que em quase cem anos de existência só ganhou um único título, o da La Liga 2. O posicionamento político, junto da rotina da cervejas nos arredores e os jogos aos fins de semana, são o que criam o ambiente comunitário ao redor do Rayo Vallecano.
As ações do Rayo Vallecano
Tanto é que os torcedores dizem não ligar tanto para as derrotas. Eles gostam é de cantar, de apoiar. E de protestar. A manifestação contra Zozulya foi apenas mais uma. A diretoria é o alvo preferido, geralmente após flertes modelos de negócio mais próximos do “futebol moderno”.
No entanto, mais do que falar, os rayistas gostam de fazer. Com o clube servindo de aglutinador, são diversas as ações em prol da comunidade valleca, de proteção e apoio à jovens em situações de risco e até de resgate de moradores do bairro pegos pela crise econômica espanhola.
Um caso emblemático foi o de Carmen Martínez Ayudo, despejada em 2015 por falta de pagamento de aluguel e reerguida financeiramente após ação do Rayo. Mais marcante ainda foi a ajuda que a própria Carmen deu ao ex-goleiro Wilfred Agbonavbare.
O nigeriano foi um ídolo rayista dos anos noventa e um icône da luta antirracista do clube. Após um ter sido diagnosticado com câncer, o goleiro foi auxiliado pela espanhola com o restante do dinheiro arrecadado para ela. Wilfred, infelizmente, morreu no mesmo ano.
Os desafios de St Pauli e Rayo e o clássico da amizade
Esse tipo movimentação mostra a simbiose entre bairro, torcida e time, uma muito similar ao que acontece com o St. Pauli. Não à toa, a torcida alemã apoiou a espanhola no caso Zozulya. Mais do que isso, os times fazem anualmente o “clássico da amizade”, que converte a bilheteria em doações.
Apesar de tudo, esse tipo de relação identitária de St. Pauli e Rayo Vallecano com suas torcidas não está livre de contradições. Para além dos problemas no tom de manifestações, especialmente das torcidas organizadas, há o contraponto das questões econômicas e desportivas.
Ambos são times de futebol, afinal de contas, que querem vencer, crescer, competir. E têm de lidar com os desafios de fazer isso em concordância com seus valores.
A torcida do Rayo Vallecano, por exemplo, tem que conviver com a contradição de brecar ações econômicas elitista e ao mesmo tempo cobrar um futebol de maior qualidade. É preciso dinheiro para isso acontecer.
No St. Pauli, algo parecido. O clube tem um faturamento maior do que o do Rayo, até porque consegue vender muitos produtos com sua imagem, especialmente com o símbolo pirata. E tem que aguentar as críticas das alas mais extremas por ser “vendido”.
De qualquer maneira, esse parece um preço que está todo mundo disposto a pagar. Clube, torcida, bairro, todos sabem que os desafios podem ser vários, mas o sentimento será só um. Ou vários. O importante é conviver e respeitar.
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Jornalista formado pela UNESP, foi repórter da Revista PLACAR. Cobriu NBB, Superliga de Vôlei, A1 (Feminino), A2 e A3 (Masculino) do Campeonato Paulista e outras competições de base na cidade de São Paulo. Fanático por esportes e pelas histórias que neles acontecem, dos atletas aos torcedores.