O ano de 2020 é um tanto cabalístico para as efemérides do futebol brasileiro. Nele, completam-se 50 anos da Copa de 1970, e 70 da Copa de 1950. O ápice e a tragédia em aniversários redondos e representativos. Infelizmente, esse texto falará do ponto baixo. Falará do Maracanazo.

Mas também não será com todo esse baixo astral não. Em 70 anos, muita coisa aconteceu, e muitas feridas cicatrizaram, ainda que algumas continuem pungentes e escancaradas todos os dias no cotidiano do esporte e da sociedade.

A questão é que o Maracanazo foi muito dolorido, mas não só pelo jogo em si. Ele foi o desfecho inimaginável de uma linda história que vinha sendo escrita, de uma campanha memorável da Seleção Brasileira, numa Copa do Mundo inesquecível.

Por isso que o evento pode ser considerado a maior tragédia do futebol brasileiro, até mais do que o 7 a 1. O placar de 2014 foi vexatório, sim, um papelão da nova geração da Família Scolari, mas a derrota em si não pode ser considerada como nada além de normal.

Primeiro pela qualidade da Alemanha, e depois pela campanha da Seleção na mais recente Copa no Brasil, marcada mais por momentos de tensão do que de entusiasmo. Em 1950, o sentimento era de pura empolgação. Pelo menos até o primeiro gol do Uruguai.

A Copa do Mundo de 1950

Desde a Copa do Mundo de 1938 que o Brasil tinha interesse em sediar o evento. A Seleção tinha um timaço naquela edição, com Domingos da Guia na zaga e Leônidas da Silva no comando do ataque, mas caiu diante da Itália, a campeã, na semifinal.

Talvez a derrota em solo europeu tenha motivado um sentimento de “lá em casa a gente se resolve”, e desde aquele ano o País já tinha colocado seu nome no pote, junto do nome da Alemanha.

Com a Segunda Guerra, não só as edições de 1942 e 1946 não aconteceram, como a Alemanha não tinha condições de receber qualquer evento. Nem podia, aliás, sofrendo as sanções institucionais da Guerra.

A bigorna caiu no colo do Brasil, e muito bem caída, aliás. O Maracanã foi feito especialmente para ela, na época o maior estádio do mundo, com capacidade para mais de 100 mil pessoas.

Infelizmente, foi um evento para o privilégio de poucos participantes. O cenário mundial não era o dos melhores no pós-Guerra, e muitas seleções deram para trás. De 33 inscritas nas eliminatórias, apenas 13 equipes jogaram a competição.

Até por isso que foi a única Copa sem uma final oficial, já que a fase decisiva teve de ser feita num quadrangular final.

A “finalíssima” contra o Uruguai foi um tanto obra do acaso da tabela, ainda que com uma influência aqui e ali para deixar por último o jogo do Brasil com uma seleção campeã do mundo.

Em compensação, a Copa de 50 teve a estreia da Inglaterra, que enfim tinha superado as divergências políticas com a FIFA. Mas o alarde foi meio injustificado. Com duas derrotas e só uma vitória, o English Team foi despachado para a Grã-Bretanha direto da fase de grupos.

Estreia melhor e menos comentada foi a das camisas com numeração, que tinham começado no Brasil só três anos antes. Só que ainda não era a numeração clássica. A 9, por exemplo, ficava com o lateral esquerdo, a 7, com um reserva, e a 10 não ficava com o craque do time. Mas pelo menos estava em boas mãos – ou boas costas, no caso.

O Brasil na Copa de 1950

Poucas vezes a Seleção Brasileira chegou tão favorita numa Copa do Mundo. Estava tudo alinhado: a ausência de muitos adversários espinhosos, principalmente a França e a Hungria; o clima favorável de jogar em casa; e o timaço formado.

A base do time era do histórico Vasco do fim da década de 1940, o chamado “Expresso da Vitória”, que ganhou nada menos que 22 títulos entre 1944 e 1952, incluindo o Campeonato Carioca de 1950.

Do Cruzmaltino, vinham o goleiro Barbosa, os defensores Augusto e Ely, o meia Danilo, os atacantes Alfredo, Chico, Friaça (que foi do Vasco até 1949, quando foi para o São Paulo), e o craque Ademir de Menezes.

Artilheiro do Carioca de 50, Ademir fez mais de 300 gols com a camisa do Vasco. Um atacante completo, com técnica, potência e uma inteligência com a bola no pé acima da média.

Não foi surpresa para ninguém ele ter se sagrado artilheiro da Copa do Mundo de 1950. Foram nove gols do camisa 14, o recordista da Seleção em gols numa única edição do torneio.

Ademir estava, afinal, à vontade no time, com conhecidos dos seus pés em todos os setores do campo. Até no banco.

Maracanazo, 70 anos: a maior tragédia do futebol brasileiro
Antes do Vasco, Ademir foi ídolo do Sport de Recife (Foto: Divulgação/ CBF)

O técnico Flávio Costa já conhecia Ademir da pior maneira, treinando o Flamengo nos primeiros dois anos do Expresso da Vitória. De tanto sofrer aos seus pés, foi treiná-lo no Vasco, em 1947, enquanto também era o comandante do “escrete” nacional.

Flávio foi um personagem muito influente no futebol brasileiro nos anos 40. Zagueiro do Flamengo até 1936, já começou a treinar o time em 1934, tamanho o moral que tinha entre dirigentes e entre os próprios companheiros.

Tinha a fama de disciplinador, muitas vezes se impondo na base da porrada mesmo. Teve até uma vez em que desarmou um “esquentado” Heleno de Freitas, que sacou um revólver sem munição para o treinador após uma de suas inúmeras discussões no período do craque no Cruzmaltino.

Na sequência do desarme, dizem, houve uma surra por parte de Flávio. O golpe verdadeiro veio depois, com a ausência de Heleno da Copa. Diz a biografia do jogador que disputar a Copa no Brasil era o seu grande sonho.

Sem Heleno e sem “Anos de Sonho”, mas ainda assim com um elenco invejável, que teve, por exemplo, um jovem Nilton Santos na reserva.

Flávio Costa armou o time no sistema “WM”, uma espécie de precursor do 3-4-3, e com um jeitinho brasileiro. O time que enfrentou o Uruguai tinha: Augusto pela direita, Juvenal no meio e Bigode na esquerda, na defesa; na frente, Chico na esquerda, Friaça na direita e Ademir de Menezes no comando da área.football formations

O “jeitinho” estava no meio de campo, que na tradição do WM era para formar um quadrado – as duas pontas de baixo no “W” e as duas de cima do “M” -, mas em 1950 foi um losango, no esquema cunhado de “Diagonal”.

Bauer, do São Paulo, o camisa 8, fazia o vértice mais recuado, caindo um pouco para direita e protegendo a defesa; Jair da Rosa Pinto, do Palmeiras, fazia o ponto mais avançado, encostando no atacante, quase como um ponta de lança. Era o camisa 19, mas fazia a função de 10.

Quem era o camisa dez de fato era Danilo, que caía pela esquerda, só que mais recuado. “O Príncipe” honrava o número nas costas, que na verdade ainda não tinha recebido tal significado. Mesmo assim, jogava com classe, de cabeça erguida.

Completava o losango outro camisa 10 de direito, Zizinho. Caindo pela direita, o “Mestre Ziza” fazia de tudo, armando, defendendo, driblando, passando. Entre tantos feras, era provavelmente o melhor jogador brasileiro na época, o ídolo de gerações de flamenguistas, e de um santista em especial: Pelé.

Autor de dois gols, Zizinho foi um dos principais responsáveis pela arrancada brasileira no quadrangular final, e foi merecidamente eleito o craque da Copa pela imprensa. E olha que nem começou como titular.

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A campanha da Seleção Brasileira na Copa de 1950

24/06/1950 – Brasil 4 x 0 México

A caminhada brasileira na Copa não poderia começar em outro lugar senão o Maracanã. No dia 24 de junho, mais de 80 mil pessoas presenciaram uma abertura pomposa, com marchas de pelotões do exército e pombas brancas ao ar.

No campo, os presentes viram uma Seleção que atacou desde o começo, e terminou com um 4 a 0 no placar, com dois gols de Ademar, um de Jair e outro de Baltasar, do Corinthians, que substituía Zizinho, ainda se recuperando de uma lesão.

28/06/1950 – Brasil 2 x 2 Suíça

O segundo jogo brasileiro foi o único fora do Maracanã na competição inteira. O Pacaembu foi quem recebeu as honrarias, que infelizmente não terminaram em vitória. A seleção suíça endureceu demais o jogo, com o seu já clássico ferrolho.

O problema não foi nem tanto furar a defesa suíça, o que aconteceu com o ponta Alfredo, logo aos 3 minutos de jogo, e depois com Baltasar, aos 43 do primeiro tempo. Faltou mesmo segurar o ataque suíço, que conseguiu empatar duas vezes o jogo, inclusive com um maldoso gol aos 43 do segundo tempo.

01/07/1950 – Brasil 2 x 0 Iugoslávia

O “revés” – tamanho era o favoritismo do Brasil que um empate era assim considerado – endureceu o coro pela presença de Zizinho no time. Baltasar, que nem foi mal, muito pelo contrário, foi o sacado.

Não dá para dizer que a mexida não deu certo. No último jogo da fase de grupos, contra uma forte Iugoslávia, Zizinho deu um passe açucarado para o gol de Ademir, com quatro minutos de jogo. Também fechou o placar faltando um minuto para o final, depois de uma assistência um tanto quanto sem querer do mesmo Ademir.

O fato curioso do jogo fica por conta dos 12 primeiros minutos do jogo, nos quais a seleção iugoslava jogou com um a menos, já que o meia Mitic enfaixava a cabeça depois de um acidente com uma lâmpada no vestiário. Mais curioso ainda foi que Mitic foi um dos melhores da partida.

09/07/1950 – Brasil 7 x 1 Suécia

Passado o certo nervosismo da fase de grupos, e com o time operando ainda mais confiante com a presença de Zizinho, a Seleção começou o quadrangular final à todo vapor. No primeiro jogo, 7 a 1 sobre a Suécia num jogo monumental de Ademir de Menezes, que marcou quatro gols e ainda deu uma assistência.

Destaque também para Chico, autor de dois gols, Maneco, que completou o placar, e Jair da Rosa Pinto, que deu quatro passes para gol, três de Ademir e outro de Maneco.

13/07/1950 – Brasil 6 x 1 Espanha

Longe de ser tão doloroso, mas tão icônico quanto o Maracanazo foi a goleada do Brasil na Espanha, por 6 a 1. O jogo das “As Touradas em Madri”, como cantava a torcida durante a partida, foi o ápice brasileiro na competição, uma exibição de gala e que tornou apoteótico o entusiasmo com a Copa e com a Seleção.

A Espanha era outras das fortes equipes do torneio, sobrando na fase de grupos e vindo de um empate movimentado com o Uruguai no Pacaembu.

Mas a dificuldade foi pulverizada com 15 minutos, no primeiro gol de Ademir de Menezes. Jair da Rosa Pinto ampliou, e Chico começou o chocolate. Mais um de Chico, outro de Ademir, e Zizinho fechou a festa.

Com 4 pontos somados (a vitória valia dois pontos), o Brasil ia para o seu último jogo da Copa contra o segundo colocado Uruguai, com 3 pontos – 1 do empate com a Espanha, 2 da vitória apertada contra a Suécia.

Bastava um empate para a Seleção se sagrar campeã, mas, com a euforia das goleadas em sequência, a preocupação era mesmo por quanto seria a vitória.

O Maracanazo

O jornal “A Noite” já estampava a edição da noite de 15 de julho com a foto da Seleção e o título: “Estes são os Campeões do Mundo”. De fato, a campanha, o time, a fase, a torcida – oficialmente, 173 mil presentes, na memória coletiva, mais de 200 mil -, tudo, enfim, apontava para uma vitória brasileira.

O Brasil era escalado com o mesmíssimo time da goleada contra a Espanha: Barbosa, Augusto, Juvenal; Bauer, Danilo, Bigode; Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico.
O sistema, o mesmo, aquele “WM Diagonal”; a estratégia, a mesma, amassar desde o começo.

O Uruguai, por sua vez, vinha de uma caminhada complicada nos dois primeiros jogos do quadrangular final, que foram o contraponto de uma fase de grupos tranquila e muito peculiar. Afinal, seu grupo só tinha a Bolívia como adversária, ultrapassada num fácil 8 a 0.

Os complicados jogos contra Espanha e Suécia fizeram o técnico Juan López Fontana pensar em medidas especiais para enfrentar o Brasil. Tudo começou com o recuo do defensor Matías González, que foi da direita para uma posição de líbero, para tentar complicar as mortais tabelinhas entre Jair e Ademir.

Ajeitando o time para essa mexida, o central Tejera, que fazia uma função parecida com a de Bauer, foi recuado ainda mais, quase como um quarto zagueiro, e o lendário meio campo Obdulio Varela preencheu o vazio de Tejera, jogando mais centralizado. Tudo isso formava um 1-3-3-3, um primeiro esboço do 4-3-3 tão usado hoje em dia.

Maracanazo, 70 anos: a maior tragédia do futebol brasileiro

As alterações podem até parecer um tatiquês saudosista para uma boa e velha retranca uruguaia, mas não foi bem assim. Ter vários jogadores na região central da defesa ajudaram a conter o fortíssimo meio-campo brasileiro.

Quer dizer, o técnico Fontana até que queria um ferrolho, mas o capitão Varela, na conversa de vestiário antes do jogo, clamou e inspirou seus companheiros a jogar e enfrentar o Brasil, a torcida e as adversidades.

Antes fosse tão fácil. O Brasil começou amassando. Foram mais de trinta chutes brasileiros ao longo do jogo, e o placar aberto com dois minutos do segundo tempo, por Friaça.

Então, na história que todo mundo conhece, de uma maneira ou outra, a Seleção começou a ruir. Pode ter sido o entusiasmo transformado em nervosismo, pode ter sido as táticas uruguaias, o fato foi que, em menos de vinte minutos, o Uruguai virou.

Com 11 minutos do segundo tempo, Schiaffino empatou, e aos 24, naquela ponta direita, naquele chute, Ghiggia virou o placar. E o silêncio tomou conta do Maracanã.

Barbosa e o Brasil depois do Maracanazo

Os relatos mais curiosos dão conta do total despreparo, má vontade e estranheza dos momentos após o apito final. Os organizadores brasileiros, talvez por trauma, talvez por mesquinhez, não entregaram medalhas e taças.

Restou ao próprio Jules Rimet entregar, em silêncio, a taça homônima ao capitão Obdulio Varela. Não houve pombos, festa, taça erguida, nada. Só silêncio.

Nas ruas, clima de tragédia. Na mídia, raiva e a incessante busca por um bode expiatório. Bigode, o homem que marcou Ghiggia, e Flávio Costa, que o escalou, flertaram com o posto, que recaiu mesmo em Barbosa.

O goleiro, que antes da Copa era tido como o melhor do Brasil e um dos melhores do mundo, caiu em desgraça, pelo menos para o lado da crônica esportiva, e depois na memória coletiva do desastre.

Nos anos seguintes, Barbosa teve uma carreira relativamente normal, atuando por mais cinco anos no Vasco, sendo convocado para a Copa América de 1953 e quase participando do Mundial de 1954, atrapalhado, entre outras coisas, por uma perna quebrada.

Ainda que existam episódios de apoio do torcedor brasileiro, o goleiro sofreu com a culpa nele recaída, com um final de vida negligenciado pela CBF, por quem o eterno goleiro tanto fez.

O pior é que, entre os envolvidos, não existe um que coloca a culpa em Barbosa. Vicente Feola, treinador campeão mundial em 1958 e membro da comissão técnica em 1950, culpou, em um relatório publicado anos depois, o “oba-oba” que impediu uma melhor preparação.

O meia Danilo seguiu o relator, culpando a falta de “trabalho de base”. Zizinho, que virou comentarista depois de encerrar a carreira (em 1962), disse que os encaixes individuais do Brasil na marcação foram falhos.

Já Eli, reserva na Copa, relatou um racha no elenco antes da final, numa questão envolvendo presentes e o atacante Ademir. Segundo o defensor, o elenco tinha dado uma fria no atacante, que mal recebeu bolas no primeiro tempo.

Afinal, parte da memória da Copa de 1950 é construída. Para se ter noção, o termo Maracanazo (ou Maracanaço) só teve seu primeiro registro em grandes jornais no fim da década de 70.

Ainda que doa lembrar, o negócio é que entre culpas, tragédias e touradas, a Copa de Mundo de 1950 foi um momento histórico do futebol brasileiro, e ajudou a construir a seleção que seria tricampeã nos 20 anos seguintes.

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