O mundo como conhecemos é resultado de um extenso e complexo processo histórico. Ainda assim, há personagens que foram decisivos para os rumos tomados, senão todo o “produto final”. Trazendo essa análise para o futebol, podemos assim classificar Johan Cruyff.

Dono de um talento acima da média e de um entendimento único do esporte, o holandês deixou um vasto legado dentro e fora dos gramados que continuou vivo mesmo após a sua morte, em 2016.

Sua interpretação do jogo produziu inúmeros títulos e prêmios como jogador e treinador, mas principalmente equipes que extrapolaram o imaginário popular. O desempenho e a “estética” desses times foram inspirações concretas para o futebol jogado hoje em dia.

O Barcelona de Messi, Xavi e Iniesta, o tiki-taka em si, até a proficiência de Pep Guardiola no banco de reservas, tudo foi resultado não só de suas ideias como de sua atuação direta no clube catalão dos anos noventa.

Há ainda a Holanda de 1974, que inspirou dezenas de personagens ativos do jogo, e a construção de uma prolífica categoria de base no Ajax, que fornece infindáveis talentos ao mais alto nível do futebol mundial.

O impacto de Johan Cruyff foi tanto que até cruzou o Atlântico e veio fazer história no Brasil na forma do fenomenal Flamengo de Jorge Jesus. O Mister é um de seus mais renomados discípulos.

Tamanha importância merece ser sempre relembrada e exaltada. Chega a ser difícil que seja feita com justiça em mil e tantas palavras. É até por isso que no texto abaixo vamos focar mais em sua carreira como treinador, na qual sua influência é mais, digamos, “quantificável”.

A história de Johan Cruyff como treinador

Johan Cruyff começou sua carreira como treinador no mesmo time em que estreou como jogador. E que baita jogador. Dentro de campo, fez parte do seleto grupo que conquistou um tricampeonato consecutivo da Liga dos Campeões (1971-1973).

Nesses anos, se incluiu num ainda mais exclusiva lista, a de vencedores da Bola de Ouro por três vezes em sequência.

Foi com essa moral que o craque assumiu o Ajax em 1985. Não teve exatamente o mesmo sucesso como treinador da equipe holandesa, mas fez um ótimo trabalho ainda assim. Faturou duas Copas da Holanda e uma Recopa Europeia, essa em 1987.

Mesmo sem enormes conquistas, Cruyff já começou a dar algumas cartas no futebol mundial. Ensaiando o 3-4-3 que o formou na “Laranja Mecânica” e que brilharia no Dream Team do Barcelona, o técnico revelou um trio de peso: Van Basten, Frank Rijkaard e Dennis Bergkamp.

Cruyff como técnico do Ajax em entrevista coletiva após vitória contra o Feyenoord
O Ajax de Cruyff fez mais de cem gols no Holandês de 1985 (Bart Molendijk/CC)

Johan Cruyff, técnico do Barcelona

Cruyff repetiu sua trajetória como jogador ao sair do Ajax rumo ao Barcelona, em 1988. Uma similaridade foi que o clube espanhol vivia a mesma seca de títulos que rolava nos meados da década de 1970.

A novidade era a intensa crise política que extrapolou os bastidores com direito a greve de jogadores. A chegada do holandês, inclusive, foi uma cartada do presidente Josep Nuñez para trazer a torcida para o seu lado, apelando a um indiscutível saudosismo.

O momento delicado acabou por permitir ao novo treinador um maior espaço para mudanças mais profundas. Sua revolução começou com a saída de mais de dez jogadores do elenco e foi estendida para as categorias de base, em mais uma ação decisiva para a atual ordem do futebol mundial.

Precisando de uma maior profundidade no elenco para o meio campo de seu 3-4-3, Cruyff se voltou à La Masía, o centro de formação de atletas que se tornaria ilustre após a sua precisa atuação.

Jogadres Amor, Ferrer e Guardiola em seu primeiro jogo como profissionais do Barcelona
Amor, Ferrer e Guardiola foram três das principais revelações do Barcelona (Ferrer/CC)

Cruyff e a transformação de La Masía

Vendo a falta de espaço que um jovem Pep Guardiola, reconhecidamente um dos melhores do clube, tinha nas equipes juvenis, Johan Cruyff agiu para que os talentos pudessem ser melhor aproveitados.

Na raiz do problema, o infame teste da muñeca, um exame ósseo que apontava a altura que um atleta atingiria. Quem não batia pelo menos 1,80m era rejeitado. O próprio Guardiola passou raspando e Cruyff, com 1,74m, ficou indignado.

O treinador aboliu o teste, indo além da justificativa do exemplo próprio. Para ele, jogadores mais baixos aprendiam desde a infância a controlar melhor e mais rapidamente a bola, habilidade que era praticamente uma cláusula pétrea para os meias no seu esquema de jogo.

A ação foi acompanhada de outra mudança incisiva, o alinhamento de todas as categorias juvenis com o time principal. Todo mundo passou a jogar no mesmo 3-4-3 e o objetivo era formar jogadores acostumados aos movimentos do profissional, de forma a ter o máximo desempenho no menor tempo possível.

A reestruturação não só forneceu ao time de Cruyff as peças necessárias para formar um grupo histórico como estabeleceu a cultura que tempos depois acabou por formar ninguém menos que Messi, Xavi e Iniesta.

O trio foi o único da história do futebol a ser revelado no mesmo lugar e competir pela mesma edição do prêmio de melhor do mundo, em 2010.

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Dream Team: o Barcelona de Johan Cruyff

A reformulação de La Masía foi a semente que floresceu num time em que a bola era a protagonista e a técnica da sua posse um elemento presente em todo o elenco de apoio. Os frutos foram os onze títulos conquistados em seis anos pelo eterno Dream Team.

Aquela equipe entrou para a história não só pela enorme contribuição ao salão de troféus do clube mas também pela maneira em que jogava. Mesclando uma ótima safra de jogadores da base com estrelas internacionais, o Barça jogava tocando a bola de maneira inteligente, corajosa e envolvente.

O seu tamanho na história é facilmente reconhecível. Basta notar como a descrição acima cabe perfeitamente ao time que mudou os rumos do futebol mundial, o Barcelona de Guardiola.

Os discípulos de Johan Cruyff

O fim da passagem de Cruyff como técnico do Barcelona acabou sendo o fim da sua carreira na área — quer dizer, se não considerarmos seu cargo na Seleção da Catalunha, que exerceu entre 2009 e 2013. Sua presença nos bancos de reserva, porém, seguiu intensa na forma de ideias, na forma de legado.

Pep Guardiola, um dos maiores treinadores de todos os tempos, é taxativo ao dizer da sua influência como a pessoa mais importante da sua vida profissional. O espanhol é o maior discípulo do holandês e o principal responsável por fazer reverberar o legado cruyffiano pelo mundo da bola.

Seja pelo entendimento do jogo a partir da dualidade tempo/espaço, seja pela integração do gestual técnico dos jogadores à proposta tática, o trabalho de Guardiola é inteiramente permeado pelos ensinamentos de Cruyff.

Cruyff e Guardiola durante treino do Barcelona
Guardiola por diversas vezes um 3-4-3 muito similar ao de Cruyff (Reprodução/Trivela)

Jesus, holandeses e a influência de Cruyff

Guardiola não foi o único tocado pelas ideias de Johan Cruyff. Pep não foi nem o único cruyffista a treinar o Barcelona.

Frank Rijkaard, o comandante da “era Ronaldinho”, e Ronald Koeman, o escolhido para a possível “era pós-Messi”, são dois orgulhosos alunos do professor e compatriota.

Para além da conexão Holanda-Catalunha, Jorge Jesus é um dos mais prolíficos discípulos de Cruyff. O português fez um estágio no Dream Team antes de começar a sua carreira. Do holandês, o Mister absorveu a personalidade forte, as idiossincrasias e a interpretação tática do jogo.

O Flamengo de 2019, por exemplo, tinha, além da intensidade e da movimentação, uma leitura característica do eterno camisa 14 quanto à formação.

Para Cruyff, um time que quer ter uma dupla de ataque precisa ter outros dois jogadores abertos de cada lado e mais um meia central para municiá-los. O quinteto Gérson, Éverton Ribeiro, Arrascaeta, Bruno Henrique e Gabigol cumpriu a “ordem” com maestria.

O legado de Johan Cruyff

A “presença” de Johan Cruyff  em grandes equipes do Brasil e da Espanha já seria o suficiente para dimensionar a extensão do seu legado no futebol. Mas a lista continua.

A base do Ajax foi pessoalmente remodelada por ele em 2011 e deu os frutos para a histórica campanha da Champions League de 2019. (Bem) mais para trás, Arrigo Sacchi, que revolucionou o futebol italiano e influenciou ninguém menos que Jürgen Klopp, foi um “devoto” da Holanda de 1974.

Para onde você olha no mais alto nível do esporte, lá está a marca de Cruyff. Como falamos, um só texto não conseguiria e nunca conseguirá conter todo o seu impacto no futebol. Até porque ele será eterno.

Títulos de Johan Cruyff como treinador

Ajax

  • Recopa Europeia (1987)
  • Copa da Holanda (1986, 1987)

Barcelona

  • Liga dos Campeões (1992)
  • Campeonato Espanhol (1991, 1992, 1993, 1994)
  • Recopa Europeia (1989)
  • Copa do Rei (1990)
  • Supercopa da UEFA  (1992)
  • Supercopa da Espanha (1991, 1992, 1994)

Prêmios de Johan Cruyff como treinador

  • Treinador Europeu do Ano (1992)
  • 4º Melhor Treinador de Todos os Tempos – France Football (2019)
  • Treinador do Ano – World Soccer (1987)

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*Última atualização em 15 de junho de 2023