Em junho de 2020, eclodiram manifestações democráticas e antifascistas pelo Brasil. O bonde foi puxado em São Paulo, por grupos politizados de torcedores de futebol. Eles não estavam representando nenhum time ou torcida, mas houve uma faixa que foi estendida sem qualquer restrição: a da Democracia Corintiana.
Nesse contexto, afinal, nada seria mais representativo que um dos maiores movimentos esportivos de luta social da história do Brasil.
A Democracia Corintiana foi um período da história do Sport Club Corinthians Paulista que combinou discussão política, uma gestão inovadora e democrática, e, como não poderia deixar de ser, títulos e muito bom futebol.
Foram anos que reuniram nomes até hoje celebrados como referências na torcida corintiana e no futebol brasileiro, seja pelo impacto dentro de campo, sejam pelas ações fora dele.
Um movimento complexo, que só aconteceu por uma grande combinação de fatores, ou melhor, do encontro das pessoas certas na hora certa.
Como começou a Democracia Corintiana
Em 1979, o General João Figueiredo sucedeu Ernesto Geisel como Presidente da República, no que seria o último mandato da Ditadura Militar brasileira. O momento era de reabertura política, processo iniciado já no governo Geisel e escancarado por Figueiredo numa frase célebre: “É para abrir mesmo. E quem quiser que não abra, eu prendo. Arrebento. Não tenha dúvidas”.
No trabalho, na escola, no bar, o papo na sociedade civil não era outro senão a reabertura. Reabertura e futebol, né.
Em 1981, a política dividia a atenção com o mau momento de dois dos maiores clubes brasileiros. Corinthians e Palmeiras iriam jogar a Série B em 1982.
No começo daquela década, o calendário brasileiro era diferente. Ele era iniciado com as Taças Ouro e Prata, de certa forma equivalentes à primeira e segunda divisões do Campeonato Brasileiro, e era finalizado pelos campeonato estaduais.
Completava a estranheza o fato de não existir rebaixamento para as Taças. A classificação era definida justamente pelos estaduais.
Bom, em 1981, o Timão foi o oitavo do Paulistão, e o Verdão o décimo, fazendo com que ambos jogassem a Taça de Prata em 1982. No Palmeiras, foi só o começo de uma década ruim para o clube. No Corinthians, foi o primeiro passo para a Democracia Corintiana.
O desempenho no Paulista fechou um ano péssimo no alvinegro, que tinha terminado a Taça de Ouro daquele mesmo ano em 26º (de 44 times). O resultado foi uma turbulência política.
O presidente corintiano Waldemar Pires rompeu com o vice Vicente Matheus, figura lendária e muito influente no clube, tanto que o tinha indicado ao cargo para as eleições no começo daquele mesmo ano. Houve, então, uma certa lacuna de poder.
Entra em cena o Diretor de Futebol Adílio Monteiro Alves, um sociólogo com pouca experiência no cargo, mas próximo dos jogadores e bastante alinhado ao debate social da redemocratização. O dirigente já tinha, por exemplo, atuado junto do meia Sócrates para a abolição da concentração, pelo menos para os jogadores casados.
A atuação de Adílio foi um certo catalisador para a ‘Democracia'. A pouca experiência significava uma administração menos viciada, e, portanto, a tomada de algumas decisões inovadoras.
A gestão um tanto progressista do diretor, somada a ausência de Vicente Matheus, que centralizava o poder, criaram um clima favorável a novas estratégias e principalmente um espaço para novos personagens dentro do clube, começando com os jogadores.
O meia Sócrates sempre foi politizado, literato, inteligente – o apelido de “Doutor” não era só pela atuação médica, afinal. Ele acompanhava o ambiente político da época, trazendo o debate político e social para dentro do vestiário.
Com a nova configuração da diretoria, ele gozou de uma certa ascensão de poder, tendo suas ideias ouvidas e consideradas. Ele tinha o apoio de outros líderes do elenco, como os laterais Wladimir, o jogador que mais atuou pelo Corinthians, e Zé Maria, célebre pela frase “No Corinthians eu jogo até de graça”.
Não houve, nesse processo, um momento em que todos se uniram e manifestaram a Democracia Corintiana. O mais próximo disso aconteceu com a entrada de Juca Kfouri e Washington Olivetto na história.
Juca, já um jornalista de renome, era próximo do clube e dos jogadores, enquanto Olivetto, um torcedor fanático e até um hoje um dos maiores nomes da publicidade brasileira, passou a tocar o marketing do Corinthians.
Os dois fizeram da movimentação nos vestiários e bastidores algo coeso, simbólico e significativo, pelo menos midiaticamente.
Como funcionava a Democracia Corintiana
A Democracia Corintiana era, então, um movimento com duas frentes: a midiática e a, digamos, administrativa. A midiática era capitaneada por Juca e, principalmente, por Olivetto. Foi o publicitário, inclusive, que criou o nome “Democracia Corintiana”.
A ideia era unir o natural alcance de um time do porte do Corinthians com a visibilidade conquistada pelo vestiário politizado. Mensagens e slogans eram estampados nas camisetas, e os jogadores eram instruídos a usar algumas frases específicas, como “ganhar ou perder, mas sempre com democracia”.
Era o marketing usado como ferramenta de divulgação e articulação política, uma tentativa de pautar o debate social e fazer o público tomar as rédeas da redemocratização.
Houve até a formação de um conselho de “notáveis corintianos” para facilitar as ações publicitárias. Rita Lee e o diretor de TV Boni foram talvez os mais ilustres. Foi daí, por exemplo, a icônica participação de Casagrande, Sócrates e Wladimir no show da cantora no Ibirapuera, transmitido pela Globo.
A parte “administrativa” era o resultado de todo aquele imbróglio de diretores, vices e presidentes, que resultaram num maior protagonismo dos jogadores nas decisões do dia a dia do time. Em poucas palavras, uma autogestão.
Tudo passou a ser decidido em votações, das quais participavam igualmente dirigentes, jogadores, comissão técnica e funcionários. O lema interno era “um homem, um voto”.
Contratações de jogadores e de outros profissionais, agendas e horários de treinos, quase tudo era definido na base do voto. A premiação das partidas (o famoso bicho), por exemplo, teve sua distribuição igualitária votada e aprovada.
Claro que uma iniciativa dessas não passava batida, ainda mais sob um regime militar e dentro de um ambiente ultraconservador como era o futebol. A pressão sobre o Corinthians era muito maior, e as repercussões das partidas eram sempre levadas para o lado político.
Tinha gente dentro do próprio clube que era contra, numa oposição fortalecida por Vicente Matheus. O papo nos bastidores era sempre de que uma derrota podia por o fim a todo o movimento, que jogadores poderiam ser suspensos do time e outras coisas do tipo.
Inclusive a maior polêmica de todo o período da Democracia Corintiana foi a questão da oposição de jogadores do próprio elenco. O goleiro Leão, ídolo do Palmeiras e que jogou no clube em 1983, era um dos principais opositores, e até hoje tece críticas quanto à maneira em que pensamentos dissonantes eram tratados dentro do clube.
Os mais ativos daquela época se defendem desse tipo de acusação até hoje, mas há relatos, por exemplo, de que jogadores como Paulo Cézar Caju tenham sido afastados por sua má vontade com a rotina diferenciada do Corinthians.
Certas, erradas, democráticas ou paneleiras, a questão é que as ações da Democracia Corintiana tiveram, naturalmente, reações. E o que segurou a peteca, no fim das contas, foi o futebol. E esse tinha de sobra.
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A Democracia Corintiana se garante em campo
Paralelamente com toda movimentação política e social, o Corinthians tinha que atuar para reverter os péssimos resultados de 1981.
Em 1982, foram trazidos dois reforços vitais para o ataque, o ponta-direita Ataliba e o centroavante Walter Casagrande, que na verdade voltava de empréstimo, sempre presente dentro da área e nas principais decisões da Democracia.
A chegada mais importante, porém, foi a do treinador Mario Travaglini. Lenda no Palmeiras, onde se aposentou como jogador e se destacou como uma espécie de bombeiro das duas Academias, Mario foi talvez o principal elo entre o que acontecia dentro e fora de campo.
Mas não teve nada de muito político, na verdade. Desde a época no Palmeiras, era conhecido por sua autoridade mais branda, por ser próximo dos jogadores. Era comum, por exemplo, que debatesse com seus atletas a escalação e a estratégia para a próxima partida.
Nem é preciso dizer que Travaglini caiu como uma luva Corinthians. Seu estilo permitiu que toda a energia da Democracia fosse levada para campo, e os jogadores, motivados, renderam.
Nessa, o treinador conseguiu recuperar vários nomes do elenco que decepcionaram na temível temporada de 1981. Alfinete, Zenon, Biro-Biro, até os mais constantes Wladimir e Zé Maria tiveram desempenhos bem melhores com o novo comandante.
Eles formaram, junto com a dupla de atacantes recém-chegados, a base do time que chegou nas semis da Taça de Ouro de 1982, eliminado pelo Grêmio, campeão do torneio em 1981.
O líder, é claro, era Sócrates, que jogou o fino da bola nesse ano, inclusive na Copa do Mundo. Veja o gol corintiano contra o Grêmio e tire suas próprias conclusões:
Antes que você pergunte, sim, o Corinthians também disputou a Taça de Ouro 1982. Acontece que o regulamento previa que os times de melhor campanha na fase inicial da Taça de Prata conseguiam acesso à Taça de Ouro. Com cinco vitórias e dois empates em sete jogos, o Timão subiu facilmente.
No Campeonato Paulista, o ritmo se manteve. Campeão do primeiro turno, foram 24 vitórias e oito empates em 38 jogos, somando os dois turnos. Na finalíssima, contra o São Paulo, 1 a 0 na ida, gol de Sócrates; 3 a 1 na volta, com dois de Biro-Biro.
O jogo que decretou o 18º título corintiano, inclusive, mostra como cada jogador contribuía para as boas atuações do time. Sócrates e Zenon articulavam, Ataliba e Biro-Biro davam a velocidade e o Casão sempre na área para marcar.
Em 1983, sem Travaglini, mas reforçado do goleiro Leão, mais do mesmo. Uma boa campanha na Taça Ouro (20 jogos, 11 vitórias e cinco empates) , inclusive com Sócrates terminando em 3º lugar na artilharia (15 gols), e o título paulista contra o São Paulo.
Mais um 1 a 0 na ida, com gol de Sócrates, só que com um empate de 1 a 1 no volta, com outro gol de Sócrates.
Diretas Já e o fim da Democracia Corintiana
O ano de 1984 parecia fadado a ser mais um de sucesso da Democracia Corintiana, dentro de campo e fora dele. No gramado, a fórmula se repetia, com uma boa campanha no Campeonato Brasileiro, interrompida só nas semifinais, pelo campeão Fluminense.
Nas ruas, as manifestações do “Diretas Já!” mobilizavam milhões, não sem a ajuda dos slogans estampados nos uniformes corintianos e das sempre ouvidas entrevistas de Sócrates.
Por alguns votos a menos, tudo desmoronou. A PEC das eleições diretas não passou, o movimento corintiano perdeu o fôlego, e Sócrates ficou desiludido. Pouco depois, o craque partiu para uma insólita passagem na Fiorentina.
Da mesma maneira que, lá em 1981, tudo se alinhou para que a Democracia Corintiana acontecesse, em 1984 o momento foi de total desmonte.
Casagrande se desentendeu com o técnico Jorge Vieira, que já não era afetuoso com o movimento, e foi emprestado para o São Paulo. Ataliba foi para o Santos e Zé Maria já tinha se aposentado. Até Washington Olivetto se afastou, para cuidar da sua W/Brasil.
O fim da Democracia Corintiana impactou negativamente o futebol do clube, que só voltou a ganhar títulos com o Paulista de 1988, mas o movimento em si influencia a cultura corintiana até hoje, especialmente a da torcida, unindo a identidade popular com a luta social.
O resultado pode ser visto nos recentes atos antifascistas, mas também em manifestações políticas diversas nos últimos anos.
Para além do Corinthians, a Democracia influenciou a gestão dos clubes brasileiros, que na época passaram a dar mais voz aos jogadores, e que hoje usam do mesmo esquema de divisão de funções na diretoria.
Até o marketing esportivo foi transformado, passando a usar de muitas das estratégias de Olivetto, como as mensagens e os patrocínios nas camisas.
Movimento inspirador de debates, torcidas e gestões, a Democracia Corintiana é uma parte viva da história do futebol brasileiro e mostrou que não existem barreiras entre esporte, política e sociedade.
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*Última atualização em 28 de abril de 2024
Jornalista formado pela UNESP, foi repórter da Revista PLACAR. Cobriu NBB, Superliga de Vôlei, A1 (Feminino), A2 e A3 (Masculino) do Campeonato Paulista e outras competições de base na cidade de São Paulo. Fanático por esportes e pelas histórias que neles acontecem, dos atletas aos torcedores.