Uma frase muito repetida na crônica e na análise esportivas é que “o futebol não é mais o mesmo”. Ainda que originalmente referente aos aspectos técnicos e físicos do jogo, ela cabe perfeitamente para a situação do futebol feminino brasileiro.
O futebol feminino viveu no Brasil uma espécie de primavera após a Copa do Mundo de 2019. Houve um crescimento econômico, midiático e esportivo após a competição, todos acompanhados de novos rumos administrativos na CBF.
De lá para cá, houve uma série de acontecimentos marcantes — de recordes de público e de audiência, de mudanças de gestão e de estrutura — que ajudaram a reduzir ao menos um pouco a desigualdade de gênero no esporte e principalmente a projetar um crescimento sustentável da modalidade no país.
No texto a seguir, montamos uma espécie de linha do tempo dessas transformações e explicamos o porquê do momento ser o mais animador de toda a história do futebol feminino brasileiro.
O que você vai conferir neste post:
O futebol feminino pós-Copa do Mundo de 2019
O ano de 2019 já se mostrava diferente para o futebol feminino no Brasil antes mesmo de começar. No fim de 2018, já começaram a sair as notícias da obrigação dos clubes da Série A de montar equipes femininas para disputar competições nacionais e internacionais.
Algo raso, sim, mas importante ainda assim. Mais animador foi quando a Rede Globo se juntou à Band na transmissão da Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2019.
Até porque mais do que passar os jogos, a emissora preparou uma cobertura completa da competição, com jornalistas in loco, estrutura montada e transmissões para além da Seleção Brasileira na televisão aberta.
Não que a Rede Globo seja uma espécie de heroína, longe disso. É que simplesmente não há como ignorar o impacto da cobertura do maior torneio do futebol feminino pelo maior canal do País.
Brasil, o país do futebol feminino
O resultado não poderia ser melhor: audiência histórica no torneio. Mais: na final, entre Estados Unidos e Holanda, o maior número de televisões ligadas no jogo foi registrado, ora, no Brasil. Um sucesso absoluto.
No meio do futebol feminino, o crescimento da categoria após uma Copa do Mundo é considerado natural. É encarado até de uma maneira um tanto cética, como algo passageiro.
Havia, no entanto, algo diferente no processo. A começar com a Copa em si, que nunca tinha sido tão divulgada, tão comentada.
Instituições como o SESC e o Museu do Futebol armaram programações especiais; algumas empresas até liberaram seus funcionários nos horários dos jogos da Seleção. E tudo isso com a Copa América de futebol masculino acontecendo ao mesmo tempo.
Programação de amanhã do Museu do Futebol para os jogos da Copa do Mundo feminina! pic.twitter.com/NvEvXjpd4W
— Museu do Futebol (@museudofutebol) June 24, 2019
Pia Sundhage e o crescimento do futebol feminino
Então, menos de 20 dias depois do fim do Mundial — do qual a Seleção saiu nas quartas de final —uma bomba abalou as estruturas do futebol feminino. Pia Sundhage seria a treinadora das mulheres do Brasil.
Ainda que a chegada da sueca tenha sido sob os termos, digamos, “tradicionais” dos cartolas brasileiros (uma iniciativa isolada), o currículo da nova comandante trazia perspectivas para além do campo.
Bicampeã olímpíca com a Seleção dos Estados Unidos — a primeira técnica, aliás, a de fato capitalizar a estrutura e o talento do futebol estadunidense —, Pia tinha sido chamada com o claro objetivo da primeira medalha de ouro, já nas Olimpíadas de Tóquio.
Seu último trabalho, no entanto, apontava para algo mais profundo, nem que fosse por iniciativa própria. A sueca, afinal, passou dois anos na coordenação das categorias de base da seleção sueca.
A ideia — pelo menos a dela — era iniciar o mesmo processo de evolução das jovens do Brasil. Capacidade ela certamente tinha. Uma profissional qualificada e com uma visão estratégica, portanto. Uma tendência, como veremos, no futebol feminino brasileiro.
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Os recordes do Campeonato Paulista feminino de 2019
Se a contratação de Pia Sundhage mostrava uma mentalidade minimamente mais avançada da CBF, a Federação Paulista mostrou que o crescimento pós-Copa era algo além de natural.
Puxado pelo sucesso do Corinthians, que tinha a selecionável Tamires na equipe e que fez uma campanha literalmente perfeita — transmitida inteiramente e gratuitamente pela internet — o Paulistão Feminino de 2019 fez história. E mais de uma vez.
A final entre o Timão e o São Paulo colecionou marcas. A começar pelos locais das partidas, os estádios principais dos clubes. Na ida, fez o Morumbi receber seu primeiro jogo entre mulheres em 20 anos.
Na volta, colocou 29 mil pessoas em Itaquera e estabeleceu o recorde de público da história do futebol feminino no Brasil.
Quer mais? Temos: a transmissão também bateu recordes de audiência, que chegaram a ultrapassar os números de partidas da Premier League e da Bundesliga (no masculino) na televisão brasileira.
O crescimento do modelo de negócio do futebol feminino
Os números absurdos foram a consolidação do crescimento da categoria. Sim, ainda restrita ao futebol paulista, mas mostrando um caminho ainda assim.
De São Paulo, aliás,, vieram as duas boas novidades de 2020. A primeira foi o anúncio da inédita premiação para o estadual, que infelizmente desandou por conta da pandemia — os prêmios, não a competição.
Depois, um acordo inédito entre Puma e as jogadoras do Palmeiras terminou com 23 atletas alviverdes patrocinadas individualmente pela marca esportiva. E em plena pandemia.
O modelo de negócio se fortalecia. E o melhor ainda estava por vir — novamente, de São Paulo.
Aline Pellegrino e Duda, as chefes do futebol feminino brasileiro
Foi em setembro de 2020 que aconteceu a decisão que pode vir a ser a mais importante da história do futebol feminino brasileiro.
Aline Pellegrino, Coordenadora de Competições Femininas da FPF, e Duda Luizelli, Diretora de Futebol Feminino do Internacional de Porto Alegre, foram anunciadas como as novas cabeças da modalidade na CBF.
Aline, que tomou posse da Coordenação de Competições Femininas, e Duda, a nova Coordenadora de Seleções Femininas, se tornaram as primeiras mulheres a exercerem cargos de liderança dentro da Confederação Brasileira de Futebol.
Além da importantíssima representatividade, as duas são de longe as mais qualificadas para o trabalho. Em especial Pellegrino, que foi inclusive capitã da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 2007.
Sabe a obrigação dos clubes da Série A em montar equipes femininas? Aline estava envolvida como consultora da Conmebol. Ah, e os recordes do Paulistão? Era ela quem estava a frente das negociações de transmissão e dos estádios.
Tamanho era o encaixe da atual coordenadora com o cargo que na verdade sua função foi criada exclusivamente para ela. Nele, a ideia de Aline é repetir o trabalho feito em São Paulo, especialmente no que diz respeito à base.
No estado, ela promoveu uma série de medidas para estimular a formação e captação de jovens atletas. Até peneiras gerais, quase num formato de Draft de ligas esportivas norte-americanas, ela fez.
A confirmação do crescimento do futebol feminino no Brasil
O comando de Aline e Duda foi como uma ratificação do crescimento do futebol feminino desde a Copa. Uma conquista e tanto. Mais do que isso, mostra o caminho brilhante, ainda que árduo, para o futuro.
As duas são, afinal, a garantia de que o momento não será algo passageiro mas uma tendência. As medidas tomadas no pouco tempo no cargo só comprovam isso.
Para começar, houve o fim da diferença no pagamento das diárias das jogadoras convocadas para a Seleção. Com exceção da Copa do Mundo, em que será proporcional ao repasse da FIFA, homens e mulheres que vestirem a Amarelinhas agora recebem o exato mesmo valor da CBF.
Depois, uma medida importantíssima: o programa “Mulheres em Jogo”, que estabeleceu cotas e bolsas para mulheres na CBF Academy.
Responsáveis por formar e licenciar profissionais de futebol, de treinadores a gestores, os cursos agora têm uma reserva de 20% das vagas para mulheres, que também contam com descontos entre 20 e 30% da mensalidade.
O programa é essencial para compensar a disparidade financeira entre homens e mulheres no esporte. Mais, estimula a ocupação de espaços profissionais por mulheres capacitadas. Para se ter noção, dos últimos oito mil alunos da CBF Academy, apenas 300 eram mulheres.
Entre treinadores licenciados, o número é ainda mais assustador. São apenas 15 mulheres entre mais de 1300 técnicos.
O futuro do futebol feminino no Brasil
Os números mostram que o caminho está mais claro para o futebol feminino, mais ainda é longo. O que já foi percorrido, no entanto, deixa marcas.
O Brasileirão Feminino de 2020, por exemplo, não só teve seus direitos comprados pela Band como teve seus jogos alterados para o horário nobre de fins de semana. Isso mesmo, agora domingão, quatro horas da tarde, temos também futebol feminino na TV.
Outro bom indicador foi a “compra relâmpago” da ESPN Brasil dos direitos de transmissão da Liga dos Campeões Feminina, já com o torneio nas semifinais.
O que ambos os movimentos mostram é que não é só o futebol feminino que se organizou e começa a chegar nas pessoas. As pessoas agora estão indo atrás da modalidade no Brasil. E que assim sigamos.
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*Última atualização no dia 26 de outubro de 2020
Jornalista formado pela UNESP, foi repórter da Revista PLACAR. Cobriu NBB, Superliga de Vôlei, A1 (Feminino), A2 e A3 (Masculino) do Campeonato Paulista e outras competições de base na cidade de São Paulo. Fanático por esportes e pelas histórias que neles acontecem, dos atletas aos torcedores.