Um dos maiores baratos de se acompanhar o futebol europeu são as “sensações” da temporada. São aqueles times pequenos ou medianos que unem novos talentos e um jogo legal de se assistir. Na Itália, são pelo menos dois anos que esse posto é da Atalanta.
Combinando veteranos resgatados, compras certeiras e as jovens promessas de uma prolífica categoria de base, os comandados de Gian Piero Gasperini são uma atração à parte na Serie A e na Liga dos Campeões, com um futebol ofensivo, uma folha salarial baixa e altas aspirações para o futuro.
“La Dea” já deu o que falar na temporada 2018-19, sendo vice-campeã da Copa da Itália e o 3º lugar do Campeonato Italiano. Foi a melhor campanha da história do clube, coroada com a inédita vaga na Champions League. Tudo isso com apenas o 12º maior investimento do país da bota.
Mas como um modesto time do norte, que passou a maior parte do século XXI numa gangorra entre a primeira e a segunda divisão italiana, passou a ser a atual referência de futebol ofensivo, um time de de mata-mata de UCL e que começa a ameaçar a soberania nacional da Juventus?
A Atalanta de Gasperini
A chegada do técnico Gian Piero Gasperini em 2016 representou para a Atalanta um salto de qualidade digno de ouro olímpico.
Depois de dois anos fracos (17º e 13º) sob a batuta de Edoardo Reja, o time de Gasperini pulou para a inédita quarta colocação e vaga na Liga Europa ao fim de maio de 2017.
O novo treinador, afinal, chegava já colocando em prática as táticas ofensivas que desenvolveu no trabalho anterior, um 3-4-3 que fez a Genoa flutuar entre a 13ª e a 6ª colocações durante três temporadas.
Além da ofensividade, o professor colocou à prova outra habilidade que o consagrou no mercado da bola: a lapidação de talentos.
Com alguns anos na base da Juventus antes de se lançar como técnico de times profissionais, Gasperini adquiriu um certo tato para desenvolver as habilidades dos seus comandados, sejam eles jovens promessas ou jogadores mais experimentados.
Domenico Criscito, por exemplo, voltou para a sua Genoa aos 19 e com 23 estava jogando a Copa do Mundo de 2010.
Já Diego Milito e Thiago Motta, com 29 e 26 anos, respectivamente, saíram da asa de Gasperini para formar a base da Internazionale campeã da Champions League 2009-10. O treinador se juntaria aos dois na Inter no ano seguinte, numa passagem frustrada, de só três meses.
Com as táticas ofensivas desenvolvidas e o olhar para talentos escondidos apurado, o treinador encontrou na Atalanta um ambiente ideal. Lá, ele tinha à disposição uma eficiente rede de olheiros, uma política de contratação austera, mas prolífica e, principalmente, uma das melhores categorias de base da Itália.
O jovem elenco da Atalanta de 2016
Nos final dos anos 90, o atual presidente Antonio Percassi, na época em seu primeiro mandato no clube de Bérgamo, investiu e reestruturou todo o sistema de formação de jogadores de La Dea, focando em estrutura de ponta e profissionais de alto nível.
Mais de vinte anos depois, os frutos desse trabalho são visíveis, e foram colhidos pelo próprio Percassi, que começou o seu segundo mandato em 2010. São 17 títulos da Primavera, a liga juvenil italiana, e um trabalho que foca em pedagogia, aprimoramento técnico e no preparo para o time profissional.
Especificamente em 2016, isso significou uma bela de uma safra de jogadores para Gasperini lapidar: o lateral Andrea Conti, os zagueiros Caldara e Bastoni e os meias Gagliardini e Cristante.
Na primeiro ano da “Era Gasperini”, apenas Conti e Caldara foram titulares regulares, mas os demais foram um belo de um elenco de apoio, garantindo fôlego e técnica para o já ofensivo jogo Nerazzurri.
A presença da molecada no time significou uma maior liberdade para certos jogadores mais experientes decidirem. Estamos falando, é claro, de Alejandro “Papu” Gómez.
Formado no Arsenal de Sarandí, destacado na Catania e captado pelos olheiros da Dea depois de uma passagem obscura pelo Metalist, da Ucrânia, Papu já era um dos melhores jogadores da Atalanta na temporada anterior, mas evoluiu rapidamente com o novo treinador.
Em 2015-16, foram 34 jogos de Serie A, com 7 gols e 10 assistências; no ano seguinte, 37 jogos, 16 gols e 11 assistências. Mais do que um maior desempenho, o argentino teve um papel ainda maior dentro da equipe. Foram mais de 3100 minutos em campo, o que dá 35 jogos completos integralmente.
Sem falar num dos gols mais importantes da história do clube, o da vitória sobre a Chievo Verona, na 38ª e última rodada do Campeonato Italiano, que garantiu a histórica quarta colocação, a mais alta já alcançada pelo clube. Até aquele momento, pelo menos.
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A reconstrução da Atalanta de 2017
O preço de um ano de destaque, como de praxe em times médios e pequenos é um desmonte.
Foi justamente o que aconteceu ao fim da histórica temporada 2016-2017. Conti e Kessié foram para o Milan; Gagliardini e Bastoni, para a Inter; até o Caldara, que ficou, foi na verdade vendido para a Juventus e emprestado logo em seguida.
As saídas, naturalmente, custaram um melhor desempenho do time, que terminou em 7º no Campeonato Italiano e que caiu nas oitavas da Liga Europa, ainda que honrosamente, e para o Borussia Dortmund.
Mais importante foram as chegadas da temporada 2017-2018, que formariam a espinha dorsal do time que hoje brilha em noites europeias.
O zagueiro Palomino foi um achado do Ludogorets, da Bulgária; o volante De Roon foi recomprado do Middlesbrough, e o ala Gosens veio por um valor irrisório do Heracles, da Holanda. A cereja do bolo, é claro, foi Josip Ilicic, trazido do banco da Fiorentina.
O esloveno foi uma indicação do próprio Gasperini, com quem trabalhou na Palermo de 2012-13, ano que rendeu uma transferência de 9 milhões de euros para a Viola.
Ilicic não demorou para render na Atalanta, fazendo 11 gols e distribuindo 8 assistências na temporada de estreia. A sua produção só cresceria dali para frente. Sem spoilers, anos depois ele igualaria o feito de ninguém menos que Lionel Messi na Liga dos Campeões.
O meia-atacante e os demais reforços citados foram todos titulares nos dois duelos dos Nerazzuri com o Valencia, pelas oitavas da competição europeia. Vale citar também o zagueiro brasileiro Rafael Tolói, o ala direito Hateboer e o volante Freuler, que já estavam no elenco e que se consolidaram no time justamente na temporada 2017-2018.
2018-19: Atalanta fazendo história, mais uma vez
Diferente do saldão de 2017, o 2018 da Atalanta teve bem poucas saídas. Gasperini pode mandar a campo um time entrosado, e com os pontuais reforços do atacante Dúvan Zapata, que terminaria como artilheiro do time e do meia Mario Pasalic, emprestado pelo Chelsea.
Talvez o melhor reforço não tenha sido para o campo, mas para o banco: o preparador físico Jan Bangsbo.
O dinamarquês foi um um dos pioneiros na fisiologia focada na na nutrição, e o criador do teste “iô-iô”, em que os atletas fazem tiros de 20 metros e com a velocidade aumentando progressivamente.
Bangsbo veio por convite de Gasperini, com quem trabalhou na base da Juventus. Ele foi essencial para a manutenção do nível físico da equipe mesmo com as altas exigências do estilo ofensivo e da média e idade alta do time titular.
Já na estreia da Serie A foi possível ver o resultado: 4 a 0 no Frosinone, fora o baile. Dois gols e assistência de Papu Gómez, um futebol ofensivo, entrosado e cheio de gás.
O mesmo nível de atuação seria visto em outros grandes momentos da temporada, como as goleadas em Chievo Verona (5 a 1), Sassuolo (6 a 2), Bologna (4 a 1) e mais uma vez no Frosinone (5 a 0).
A Atalanta se destacaria também por peitar os grandes do Campeonato. Dois empates com a Juventus, dois empates com a Roma (os dois por 3 a 3), além de um empate contra o Milan e uma vitória contra o Napoli, com uma derrota para cada. Contra a Inter de Milão, enfiou um histórico 4 a 1 e depois segurou um empate em 0 a 0.
Paralelamente, na Copa da Itália, a Dea chegou à final depois de passar pela Fiorentina nas semis. Antes, nas quartas, aplicou um 3 a 0 de respeito na Juventus. O título, porém, ficou com a Lazio.
Ao todo, foram vinte vitórias, nove empates e nove derrotas no Campeonato Italiano. 77 gols marcados, 46 sofridos, e outra marca histórica batida – novamente na última partida da temporada.
E não foi sem emoção. Depois de empatar com a campeã Juventus em 1 a 1, a Atalanta recebeu o Sassuolo. E começou perdendo, com um gol de Berardi, no começo do primeiro tempo. Zapata marcou o seu 23º gol do ano antes do fim do primeiro tempo.
Depois, como de costume, brilhou a estrela de Papu Gómez, primeiro pegando o rebote do chute de Ilicic, depois cobrando o escanteio para o gol de cabeça de Pasalic.
A festa na cidade foi do tamanho das conquista da terceira colocação e a consequente vaga para a Champions League – histórica.
A Atalanta na Champions League
Festa ainda maior foi ao fim de 2019. Depois de fazer 3 a 0 no Shaktar Donetsk, o Atalanta, em sua primeira participação na Champions League, conquistou uma vaga para as oitavas de final.
Emoção foi ainda maior pelo péssimo início na competição, com três derrotas consecutivas, incluindo um 5 a 1 para o Manchester City de Guardiola e um inexplicável 4 a 0 para o Dínamo de Zagreb
O início ruim foi compreensível para um estreante, e que ainda por cima jogou fora de casa, mesmo com o mando de campo. O estádio do clube, o Gewiss Stadium, não só não atendia os parâmetros da UEFA, como estava em reformas, que devem durar até 2021.
Mesmo assim, a má fase da Atalanta não deixou de ser decepcionante, pelo nível mostrado na temporada anterior e por todo o planejamento feito.
Mais uma vez, pouquíssimas saídas, nenhuma vital. Mais reforços pontuais, como o meia ucraniano Malinovskyi, o atacante colombiano Muriel e o retorno do zagueiro Caldara.
O paralelo com o desempenho nacional aumentava ainda mais a sensação de fracasso internacional. Afinal, a Dea seguiu encantando com sua ofensividade no Campeonato Italiano, com direito a um humilhante 7 a 1 sobre a Udinese.
Corona e o milagre da Atalanta
Mas então o milagre aconteceu. No returno da fase de grupos da UCL, a Atalanta empatou com o City e devolveu as derrotas para o Dínamo e para o Shaktar e conquistou uma das últimas vagas para as oitavas.
Depois da classificação, foram seis vitórias no Italiano, com direito a dois 5 a 0 consecutivos – sendo o primeiro no Milan – e outros dois placares com sete gols a favor, um 7 a 0 na Torino e outro 7 a 2 no Lecce.
Na Champions League, o ritmo seguiu alucinante, marcando 8 gols nos confrontos contra o Valencia nas oitavas. No primeiro, 4 a 1, e no segundo, 4 a 3, com direito a recorde de Ilicic, que marcou os quatro gols do jogo.
Então, o Corona. A Pandemia não só interrompeu os sonhos em Bérgamo, como manchou um pouco a imagem do clube.
O primeiro jogo contra o Valencia foi apontado como um dos vetores do enorme nível de contágio na região da Lombardia, o maior da Itália e um dos maiores do mundo.
Três meses depois, o futebol voltou. E o sonho, que parecia interrompido, foi só arrefecido. 5 vitórias e 100% de aproveitamento da Atalanta no retorno da Serie A, e a expectativa para as quartas de final da Liga dos Campeões.
Disputada em jogo único, a taça ficou mais possível, e pode, quem sabe, aumentar o número de títulos do time. Ainda mais para um time tão corajoso – e perigoso -, como a Atalanta.
Como joga a Atalanta?
Ok, sabemos de toda a história, do time modesto à máquina de gols europeia. Mas como funciona o time de Gasperini? Quem se destaca? Analisamos a seguir.
Sempre 3 Atrás
A formação da Atalanta tem variado bastante na temporada, ou mesmo durante os jogos, indo de um 3-4-3 para o 3-5-2 e passando pelo 3-4-2-1. Os números e o desenho realmente não importam. Até porque sempre, sempre, são três atrás.
Tolói, Palomino, Djimsiti e Caldara se revezam na função, com os três primeiros jogando com mais regularidade. A linha de três participa bastante da saída de bola, e marca lá na frente, com uma linha alta.
O destaque fica para a presença ofensiva dos zagueiros de lado, principalmente Tolói, que desde a época do São Paulo já arriscava umas subidas. Veja esse gol contra o Napoli, por exemplo:
Não é à toa, ora, que Tolói é o terceiro maior assistente da equipe na temporada.
Intensidade no meio
Outra coisa que o técnico da Atalanta dificilmente abre mão são dos quatro homens de meio campo, sendo dois ao centro, onde revezam-se Pasalic, De Roon e Freuler, e um ala de cada lado – Gosens na esquerda, Hateboer na direita, e Castagne como reserva imediato para os dois.
Desses, quem tem mais participação com a bola no pé é Gosens, tabelando bastante com os atacantes, principalmente Gómez. Os demais têm um trabalho mais físico, de se apresentar para acelerar os ataques, se infiltrar na área e, claro, pressionar a defesa adversária depois da perda de bola.
Novamente usando a vitória contra o Napoli como exemplo, veja todo o lance do primeiro gol. Castagne (21), recebe na área para cruzar; Freuler (11) recupera a bola quase dentro da área, e Pasalic (88) está dentro da área para completar o cruzamento de Papu Gómez (10).
Papu e Ilicic: Melhores jogadores da Atalanta
Taí uma coisa que se repetiu nesse texto e nos últimos anos na Dea: passe de Papu Gómez. Ele e Ilicic são “Os Caras” do esquema de Gasperini, os melhores jogadores da Atalanta.
Os dois se revezam entre meias e atacantes, jogando perto da área e dando uma segurada na corrida na hora de recompor.
Até porque eles são a garantia de que o futebol ofensivo da Atalanta seja também eficiente. Os dois somam para mais de 25 assistências e mais de 25 gols na temporada, ou 30% de toda a produção ofensiva do time.
Para ilustrar, não tem exemplo melhor que a goleada sobre a Torino, por 7 a 0, um recital da dupla. Hat trick de Ilicic, assistências de Papu, e ainda dá para ver a importância dos centroavantes, Zapata e depois Muriel, sendo referências e puxando a marcação. Aproveite.
Como e onde assistir a Atalanta
Você pode conferir a máquina de gols de Gasperini no Campeonato Italiano, com a maioria das rodadas às quartas, sábados e domingos. O canal italiano RAI, disponível em alguns planos de TV por assinatura no Brasil, transmite alguns jogos selecionados.
Há pelo menos mais um jogo do time na Champions League, no jogo único das quartas de final. A é do transmissão do Esporte Interativo, no EI Plus ou no Facebook.
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*Última atualização em 8 de julho de 2020
Jornalista formado pela UNESP, foi repórter da Revista PLACAR. Cobriu NBB, Superliga de Vôlei, A1 (Feminino), A2 e A3 (Masculino) do Campeonato Paulista e outras competições de base na cidade de São Paulo. Fanático por esportes e pelas histórias que neles acontecem, dos atletas aos torcedores.