Por capricho linguístico, é comum usarmos palavras de etimologia marcial — embate, confronto, combate — como sinônimos de partidas de futebol. O caso da Batalha dos Aflitos, no entanto, é de uma descrição precisa.

Das estratégias à sequência dos acontecimentos, tudo no jogo entre Náutico e Grêmio pela Série B de 2005 teve ares de luta, de peleja, de guerra. Houve até as famosas “vias de fato” em um dado momento.

Mas não se engane, houve futebol também. Grandes jogadas, grandes defesas, um golaço…enfim, tudo o que gosta um apaixonado pela bola. E com contornos dramáticos que eternizaram os presentes naquele sábado à tarde em Recife.

Em homenagem a esse grande momento do futebol brasileiro, a Esportelândia relembra a Batalha dos Aflitos em seus mínimos detalhes, dos personagens aos lances mais importantes. Tudo a seguir.

O que foi a Batalha dos Aflitos?

Jogadores do Grêmio cercam o árbitro

A “Batalha dos Aflitos” foi a partida entre Grêmio e Náutico que decidiu o título da Série B do Campeonato Brasileiro de 2005 e o acesso à Série A de 2006. Ela é assim chamada como referência ao estádio do Náutico, chamado de Aflitos por conta do bairro em que está localizado.

O significado da palavra, por sua vez, cabe perfeitamente à alta carga de tensão e dramaticidade do jogo e também pelo desenrolar dos acontecimentos dentro de campo.

O Grêmio, afinal, venceu por 1 a 0  após ter quatro jogadores expulsos e dois pênaltis marcados a favor do Náutico, que também recebeu um cartão vermelho.

Quando aconteceu a Batalha dos Aflitos?

A Batalha dos Aflitos aconteceu no dia 26 de novembro de 2005, um sábado. A partida foi válida pela sexta e última rodada do Quadrangular Final da Série B do Campeonato Brasileiro e começou as quatro horas da tarde.

Quem fez o gol da Batalha dos Aflitos?

O autor do único gol da Batalha dos Aflitos foi Anderson, do Grêmio. Na época com 17 anos, o meia foi titular na reta final da campanha do Tricolor na Série B mas, voltando de lesão, estava no banco de reservas na ocasião.

Hoje aposentado, Anderson se transferiu do time gaúcho para o Porto, de Portugal. Fez a maior parte da carreira na Europa — no Manchester United, para ser mais exato. Fez 180 jogos sob o comando de Alex Ferguson, que o transformou de um meia-atacante para um volante armador.

Anderson com a camisa do Grêmio

Quem era o técnico do Grêmio na Batalha dos Aflitos?

O técnico do Grêmio na Batalha dos Aflitos era Mano Menezes, que comandou o time por todo decorrer da Série B do Campeonato Brasileiro de 2005 e depois por mais duas temporadas, até o fim de 2007.

Além da Segundona de 2005, Mano conquistou mais dois títulos do Campeonato Gaúcho com o Grêmio, em 2006 e em 2007.

O treinador do Náutico era Roberto Cavalo, que comandou mais de vinte times brasileiros na carreira. Na década de 2010, se notabilizou por ficar mais restrito ao circuito equipes paulistas, além de ter treinado todos os principais clubes de Santa Catarina.

Escalações na Batalha dos Aflitos

O Grêmio foi escalado por Mano Menezes para a Batalha dos Aflitos com: Galatto, Patrício, Pereira, Domingos e Escalona; Nunes, Sandro, Marcelo e Marcel (Anderson); Lipatin (Marcelo Oliveira) e Ricardinho (Lucas).

Já o Náutico foi a campo com: Rodolpho, Bruno Carvalho (Miltinho), Tuca, Batata e Ademar; Tozo (Betinho), Cleisson, David (Romualdo) e Danilo; Paulo Matos e Kuki.

Como foi a Batalha dos Aflitos

Foto do Estádios dos Aflitos, em Pernambuco

Se tivéssemos que resumir a Batalha dos Aflitos, futebolisticamente falando, seria algo como um jogo movimentado, pegado fisicamente e consumido pela sua enorme tensão nos minutos finais.

Só que não é possível descrever a partida somente na bola, tampouco somente com os acontecimentos em campo.

A situação do competição, por exemplo, já era dramática por si só. Era a sexta e portanto última rodada do quadrangular final da Série B. Disputada nos moldes de uma fase de grupos da Libertadores, todos os times se enfrentavam duas vezes e os dois melhores avançavam, no caso à Série A do Brasileirão.

O Grêmio era quem tinha o melhor desempenho até ali. Tanto que bastava um empate para garantir o acesso. Com uma vitória, faturava o título. O Náutico, por sua vez, só tinha uma opção: vencer. Só assim estaria na primeira divisão em 2006.

A catimba do Náutico na Batalha dos Aflitos

Dizem os pensadores modernos que o futebol é a tentativa de controle do caos. O clube pernambucano, no caso, tentou controlar a situação justamente gerando caos, e com participação da sua torcida.

Para se ter noção, o ônibus gremista foi cercado por torcedores do Timbu na chegada ao estádio. A delegação visitante precisou ser escoltada até a porta do vestiário. Lá, uma bela arapuca foi armada pelos donos da casa.

Os funcionários do clube pernambucano tinham acabado de pintar as paredes do único refúgio gremista. O lugar recendia à tinta óleo, um cheiro que parece cortar o nariz.

O retoque foi acompanhado de uma “reforminha”, uma parede erguida no meio da sala reservada ao aquecimento dos jogadores. Na hora de sair para pegar um ar e fazer o reconhecimento do campo e do alçapão que os esperava, os jogadores tiveram uma surpresa final: a porta estava chumbada e trancada à cadeado.

O jeito foi subir pelo túnel principal…que estava fechado por policiais. O estresse, que já era alto no lado gremista, só aumentou. Teve até empurra-empurra entre o elenco e o destacamento do campo.

O jogo da Batalha dos Aflitos: tenso e movimentado

Quando enfim o Grêmio foi a campo, ainda para aquecer, encontrou os adversários prontos para jogar. O jeito foi dar meia volta e se vestir para a batalha.

O apito deu início ao que pareceu uma luta de boxe. O Náutico era o lutador mais ágil, que cercava o adversário e apostava na velocidade. O Grêmio, mais forte e interessadíssimo num empate, deixava a guarda alta e ficava mais próximo às cordas.

No ritmo de Kuki, o veterano e ligeiro atacante, o Timbu golpeava pelos lados, acelerando as jogadas pela direita. Tentava entrar na área tabelando. Tentava não, conseguia. Mas era parado pela boas intervenções do goleiro Galatto — lembre-se desse nome.

Aos 30 minutos do primeiro tempo, o primeiro knockdown: pênalti para para o Náutico. O atacante Paulo Matos recebeu a bola dentro da área e também o carinho do zagueiro Domingos. O juiz não teve muita dúvida para apitar.

A cobrança terminou na trave. O Grêmio se levantou antes da contagem dos 10 segundos. Mas se fechou até o fim dos 45 minutos iniciais, segurando na marra as investidas do Timbu, que não se deixou abater com a oportunidade perdida.

Tensão e delírio no segundo tempo da Batalha dos Aflitos

Mano Menezes sentiu o momento do adversário e na volta do intervalo mandou Lucas Leiva, na época um jovem volante da base gremista, para o lugar do atacante Ricardinho. Frieza gaúcha para conter o calor pernambucano.

A estratégia não deu lá muito certo, já que Náutico continuou mandando no jogo. Não era exatamente um domínio, mas o perigo rondava a área do Grêmio constantemente. Tanto que aos 16 minutos entrou o menino Anderson, meia, para conduzir melhor os contra-ataques gaúchos.

A mexida surtiu efeito rapidamente. Com 22 minutos, o garoto de 17 anos deixou o uruguaio Lipatin na cara do gol. O atacante errou o lance e perdeu a chance de deixar o jogo mais tranquilo — a última chance, aliás.

Oito minutos mais tarde, o caos que o Timbu tentou provocar finalmente aconteceu. Escalona meteu a mão na bola, recebeu o seu segundo cartão amarelo e foi expulso. Fogo na lenha. Dois minutos depois, a torcida reclamou um pênalti não marcado. Pressão.

Nesse ritmo alucinante, o atacante Paulo Matos invadiu novamente a área e chutou. A bola bateu no braço do gremista Nunes. O apitou soou. E começou a confusão.

O lateral direito Patrício foi para cima do árbitro Djalma Beltrami. Mas para cima mesmo. Deu uma trombada no juizão e recebeu um cartão vermelho em troca. O tempo fechou. Os tricolores gaúchos cercaram Beltrami, que, assustado, chamou a polícia para protegê-lo.

Vá além do futebol:

A defesa de Galatto na Batalha dos Aflitos —

Foram precisos mais dois cartões vermelhos e outros vinte minutos para a poeira baixar. Quando o lateral esquerdo Ademar — que não era o cobrador oficial, sequer era um titular regular — foi para a cobrança, os gremistas Domingos e Nunes também tinham sido excluídos da partida.

A confusão foi tamanha — com direito a briga entre jogadores do Grêmio e a polícia — que o batedor ouviu do árbitro que, se a bola entrasse, ele encerraria o jogo. Mas nem o juiz nem Ademar contavam com Galatto. Acho que nem a própria torcida gremista.

Simplesmente ignorando todas as adversidades — os quatro jogadores a menos, a possibilidade de permanecer na Série B e as possíveis repercussões em sua carreira — o goleiro defendeu o pênalti. Até pulou pro lado errado, mas deixou o pé salvador para rebater a bola direto para a linha de fundo.

O gol de Anderson na Batalha dos Aflitos

Quanta história cabe em 71 segundos? Para o Grêmio, foi tempo entre o possível desastre e a glória imortal. Foram exatos um minuto e 11 segundos que separaram a defesa de Galatto e o gol de Anderson.

O Náutico cobrou o escanteio, a defesa rebateu. O rebote caiu nos pés do menino gremista, que foi conduzindo pela esquerda com uma experiência incomum para a idade. Quando enfim deu uma arrancada de moleque, foi derrubado pelo veterano zagueiro (e aniversariante) Batata.

O defensor do Timbu foi expulso. Enquanto ele saia de campo, Anderson se posicionava silenciosamente na ponta esquerda. Mal o adversário cruzou a linha lateral rumo aos vestiários, a falta foi cobrada em sua direção.

Daí em diante, pura mágica do futebol. O meia disparou rumo à área, se livrou de dois adversários e tocou com categoria no canto direito do goleiro para vencer a batalha.

O vídeo a seguir mostra o gol em maiores detalhes, a cobrança rápida, a desatenção da defesa e a velocidade do jovem gremista:

O mais incrível de tudo é que o jogo continuou por mais oito minutos —sim, o segundo tempo teve no total 1h09 de duração. Como vimos, é tempo mais do que suficiente para a história acontecer. Mas o futebol tinha decidido que já era suficiente.

O que aconteceu após a Batalha dos Aflitos

A Batalha dos Aflitos foi um marco inesquecível para Grêmio e, por mais que o clube tentasse esquecer, para o Náutico.

Os gaúchos começaram seu processo de reconstrução após a partida, sendo bicampeões estaduais em 2006 e 2007 e vice-campeões da Copa Libertadores, ambos os títulos ainda mantendo algumas das peças que “sobreviveram” àquela tarde em Recife.

Se os sulistas fazem questão de lembrar a Batalha dos Aflitos, os recifenses tentam sempre  esquecê-la. Foi algo demorado, claro. A começar para os jogadores, que só conseguiram sair das dependências do estádio de madrugada.

No ano seguinte, porém, o Náutico conseguiu o adiado acesso. Em 2006 a Segundona voltou à mandar quatro times para a Série A. O Timbu subiu junto com o Atlético Mineiro, que foi campeão, com o rival Sport, o vice, e com o América de Natal, quarto colocado.

Jogadores do Náutico comemoram o acesso em 2006

O filme da Batalha dos Aflitos

A história da Batalha dos Aflitos foi tão incrível que não tinha como não ser transformada em filme. Em 2006, foi lançado “Inacreditável: a batalha dos Aflitos”, um documentário em longa metragem dirigido por Beto Souza do ponto de vista gremista.

O filme remonta a história da partida com depoimentos inéditos exclusivos de todos os envolvidos, da comissão técnica aos jogadores do Grêmio e até alguns atletas do Náutico. O documentário se notabiliza pela participação de torcedores entre as entrevistas.

O livro da Batalha dos Aflitos

A história da Batalha dos Aflitos também foram contadas em páginas de livro. “71 segundos — o jogo de uma vida”, do jornalista Luiz Zini Pires, tem 120 páginas e foi lançado em 2006 pela L&PM Editores.

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